(concentração na matriz)
PENTEANDO A MEMÓRIA 19
CARLOS ENES
Os terceirenses começaram a promover comemorações nos finais do século XIX para enaltecer os filhos da terra e outras individualidades que julgavam merecer uma projeção acima do comum dos mortais. Pode pois parecer estranho que, em Outubro de 1906, quando decorria o terceiro centenário do nascimento de Francisco de Ornelas (1606-1664) nada tivesse acontecido.
Assim foi e a explicação é simples: a projeção de Francisco de Ornelas como herói terceirense foi uma construção do Estado Novo. Até então, embora fossem conhecidos os atos que praticara, a comunidade terceirense valorizava mais os que se haviam empenhado nas lutas liberais. A mudança do rumo da história, com a ideologia salazarista, inverteu o percurso: a memória liberal tendeu a ser esquecida e passaram a enaltecer aqueles que melhor se enquadravam no ideário do Estado Novo. Deste modo, ganharam realce os que lutaram contra a entrada dos castelhanos (1580) e os que participaram na sua expulsão.
Neste último grupo, destacou-se Francisco de Ornelas, por ter proclamado na Praia, D. João IV, como rei de Portugal, numa altura em que os espanhóis ainda ocupavam o Castelo, em 1641. A imagem que até então existia sobre ele não era consensual e, pelos relatos da época, não consta que tenha sido um abnegado combatente.
(Descendo a Ladeira de S. Francisco)
Mas as virtudes do patriotismo exacerbado do Estado Novo fizeram com que ele emergisse para o pedestal da glória.
Em 1935, foi dado o primeiro passo, com a abolição do feriado a 11 de Agosto, data em que os liberais venceram os miguelistas na baía da Praia, passando o feriado para o dia 24 de Março. Esta data corresponde ao dia em que o povo aclamou na Praia o rei português, sob a liderança de Francisco de Ornelas.
Uns anos depois, em Março de 1940, o Largo 11 de Agosto, em frente à Câmara Municipal, passou a Largo Francisco de Ornelas, por ser “o praiense de maior valor em toda a história do concelho”. A rua que então havia com o seu nome passou a designar-se Constantino José Cardoso. No mesmo ano, já existia um prémio com o seu nome e que era atribuído ao cantoneiro que apresentasse mais limpo o seu cantão.
A consagração do herói praiense ocorreu por altura das comemorações do Duplo Centenário, que se prolongaram na Terceira no ano de 1941.
A festa teve lugar no dia 24 de Março com um Te Deum na igreja matriz, em ação de graças pela independência de Portugal. Nesta cerimónia participaram, para além das autoridades, a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa, seminaristas, alunos das escolas de Angra e Praia e numeroso público. No final do Te Deum, foram depositadas flores na capela onde estão depositados os restos mortais do homenageado.
(monumento)
Seguiu-se a inauguração do monumento, projeto do mestre Maduro Dias, colocado no adro da matriz. Para além do desfile militar, da atuação dos orfeões da Escola Salazar e do Liceu, da exibição de uma dança das Lajes, houve também discursos. E neles esteve presente, logicamente, o patriotismo do herói para servir de exemplo aos jovens.
No seu discurso, o dr. Francisco Valadão Júnior interrogava: ” De que servirá a nós terceirenses lembrar toda a nossa gesta épica, feita de lutas cruentas, de heroísmo, e de Glória? … De que servirá?”
E o próprio orador respondeu: ” Para nos orgulharmos de sermos terceirenses, para nos orgulharmos de sermos portugueses, para nos orgulharmos da nossa grandeza moral (…) Povo que não sente orgulho do que foi e é – é Povo em decadência irremediável”.
A força do amor à pátria e o desejo de libertá-la da posse de estrangeiros foram ideias centrais registadas em muitos discursos que funcionavam como elemento aglutinador de uma comunidade que se revia na imagem dos seus heróis que o poder político escolhia com todo o rigor.