PENTEANDO A MEMÓRIA 27
CARLOS ENES
A real importância da Fortaleza de São João Baptista, como prisão política no tempo de Salazar, ainda não foi devidamente estudada. Há muitos testemunhos impressos de homens que por lá passaram e deixaram para a história o relato da vida quotidiana, dos castigos a que eram submetidos, das relações entre os presos, nem sempre amistosas por divergências ideológicas, e das peripécias que faziam para fugir ao controlo dos guardas, mas ainda há muita documentação oficial por trabalhar. Desses testemunhos cite-se, por exemplo, O Segredo das Prisões Atlânticas, de Acácio Tomás Aquino, Na Inquisição de Salazar, da autoria de Luís Portel e Edgar Rodrigues ou o Portugal Oprimido de Fernando Queiroga. O escritor Fernando Namora também denunciou este martírio através de um romance, Os Clandestinos, baseado em informações fornecidas por Lyon de Castro.
Mas enquanto esse estudo não for feito, aqui fica um breve resumo do que já apurei sobre o tema, prestando homenagem a todos aqueles que lutaram pela liberdade.
Numa primeira fase, após o golpe militar de 28 de Maio de 1926, os Açores ficaram conhecidos como terra de deportação. Os opositores ao regime circulavam livremente pela ilha onde eram colocados, mas este regime revelou-se inadequado, dado que passavam o tempo a conspirar. Foi graças a essa liberdade de movimentos que se deu a Revolta dos Deportados, em 1931, nos Açores e na Madeira.
A partir de então, Salazar optou para encarcerar, em várias prisões, aqueles que lhe eram desafetos. O “Castelo” sofreu algumas remodelações para albergar as centenas de prisioneiros que começaram a chegar com regularidade, a partir da revolta de 18 de Janeiro de 1934, na Marinha Grande. Houve adaptação das cavalariças a camaratas, constituiu-se um Tribunal Militar Especial, para julgamentos, e reestruturou-se a organização da unidade militar que passou a viver essencialmente para este fim. Os testemunhos que nos chegam revelam bem a falta de humanidade dos comandantes do chamado “Depósito de Presos”, com castigos severos na Poterna/Calejão. Num buraco subterrâneo eram encerrados os presos mais renitentes, individualmente ou em grupo. E nesse subterrâneo gelado e húmido, com água a escorrer pelas paredes, ali ficavam dias e dias, sem qualquer tipo de higiene, tendo que suportar os cheiros das próprias necessidades corporais.
Presos a bordo do navio
Numa fase inicial, os presos chegavam de barco e seguiam depois para o Castelo, à vista da população. Os jornais noticiavam a chegada e referiam, inclusive, os julgamentos do Tribunal Especial. A intenção seria a de mostrar à população quão perigosos eram os prisioneiros, para que ela percebesse que o regime não era condescendente. Mas, como estas notícias davam má imagem do regime, passaram a ser banidas pela censura e os desembarques ou embarques começaram a ser feitos com mais secretismo. Pelas portas do “Castelo” entraram os que eram considerados mais perigosos, nomeadamente militantes do Partido Comunista Português e do movimento anarco-sindicalista, bem como outros ligados ao Partido Socialista ou republicanos de várias tendências. Uma boa parte deles seguiu depois a caminho do Tarrafal, a famosa prisão em Cabo Verde, conhecida como o “Campo da Morte Lenta”. O número de opositores era tão elevado, que o “Castelinho”, do outro lado da baía de Angra, também teve que ser utilizado como prisão.
O “Depósito de Presos” só foi encerrado devido à presença dos militares ingleses e americanos estacionados na Base das Lajes. Uns e outros punham em causa o regime, denunciando a falta de democracia existente. E faziam-no nas conversas com as próprias autoridades locais. Para evitar críticas, o governo decidiu transferir para outras prisões os seus opositores.
Tarrafal, Caxias e Peniche foram prisões que perduram na nossa memória como locais onde a tortura se exerceu sem compaixão, e a PIDE, polícia política do regime, se empenhava a transformar seres humanos em farrapos. Mas foi no Depósitos de Presos, em Angra, que muitos dos verdugos iniciaram as suas perversidades.