PENTEANDO A MEMÓRIA 29
CARLOS ENES
A história da fotografia nos Açores revela-nos uma série de curiosidades que evidenciam bem a posição privilegiada dos Açores no contexto das rotas do Atlântico. Todo esse manancial de informação ficou impresso num livro da minha autoria sobre o mesmo tema, mas nesta crónica venho apenas evocar a memória dum fotógrafo que deixou para a posteridade pedaços da nossa memória e da nossa identidade – António José Leite.
António José Leite
Em jeito de introdução, refira-se que a fotografia na versão do daguerreotipo foi inventada em 1837 e terá chegado a Portugal em 1839. No início dos anos 40, há notícias da passagem de fotógrafos estrangeiros pelo país e os Açores terão sido das primeiras regiões portuguesas a conhecer mais esse progresso da humanidade. Em 1845 e 1846 encontramos notícias na imprensa de fotógrafos estrangeiros em Ponta Delgada e em Angra, respetivamente.
O mesmo fenómeno acontecerá uns anos mais tarde com o cinema. Um ano depois de ter aparecido em Lisboa (1896), os açorianos puderam apreciar as delícias da 7ª Arte nos meses de Agosto, Setembro e Outubro nas salas do Teatro Angrense, União Fayalense e Teatro Micaelense, no ano de 1897.
Mas se a fotografia nos chegou por intermédio dos estrangeiros, rapidamente encontramos açorianos a dedicarem-se ao ofício. A partir de 1860 já surgiam nas cidades, de então, fotógrafos com casa montada e porta aberta para bem servir o público. O negócio devia ser pouco rentável, porque os vemos associados a outras profissões, na maior parte dos casos, mas nem por isso deixaram de abrir estabelecimentos que se foram depois estendendo às vilas.
Neste contexto surge-nos António José Leite (1872-1943) que se revelou um dos melhores artistas do seu tempo. Nascido no Porto, deslocou-se ainda jovem para a Terceira como empregado de balcão de um negociante também nortenho. Casou em Angra e estabeleceu-se como comerciante de fazendas, em 1897. Fotógrafo amador, serviu-se da objectiva para revelar o seu talento. Em 1901, participou numa exposição em Ponta Delgada, por ocasião da visita régia, com vários postais. Como reconhecimento pelo seu trabalho, recebeu mercê para usar o título de fotógrafo da Casa Real.
O seu estabelecimento, com a designação de Loja do Buraco, ficava situado na esquina da Rua da Sé com a de São João. Esta designação deve-se ao facto de a ligação entre os dois pisos ser feita por uma galeria circular, restos da antiga ermida de S. João que ali existia. As suas montras eram um local de exposições frequentes de fotografias ou de pinturas de artistas locais e era também ponto de encontro da intelectualidade. Em torno de José Leite, circulava um conjunto de fotógrafos amadores, como Guilherme Enes, José Sebastião Castro do Canto, entre outros, que ali exibiam os seus trabalhos. Estes dois, por exemplo, assinam fotografias coloridas da colecção de postais da Loja do Buraco.
Estes famosos postais, com edições várias, fizeram um sucesso na época, não só para divulgação dos Açores no exterior, mas também por fixarem no papel aspetos muito variados dos nossos usos e costumes, bem como da paisagem urbana ou rural.
Muito conhecidas e valiosas são também as fotos que tirou para os brindes que eram oferecidos pela Fábrica de Tabaco Flor de Angra aos seus clientes. As temáticas eram muito semelhantes às dos postais da Loja do Buraco, mas tinham a vantagem de atingir um público muito mais diversificado.
Trabalho numa pedreira
Mas António José Leite foi também um fotógrafo da vida social citadina, com especial incidência nos meios sociais em que convivia. Nas festas de cariz mais privado revela-nos ambientes da vida burguesa, que nos permitem captar as variantes do trajo, os interiores das casas ou os divertimentos mais em voga. Nos espaços públicos, o fotógrafo não deixou de estar atento aos grandes acontecimentos de carácter histórico, político ou social, como sejam festas comemorativas ou acontecimentos desportivos.
Nos anos 20, António José Leite trespassou a Loja do Buraco e montou a Foto-Bazar, na Rua de São João, 137, vendendo material fotográfico e fazendo acabamentos em trabalhos de amadores. Após a sua morte, o filho João Leite ainda a manteve em funcionamento até meados dos anos 50. Uma parte do seu espólio deu origem a um livro publicado por Francisco Ernesto Oliveira Martins, evidenciando o olhar atento do fotógrafo nos mais variados acontecimentos da vida terceirense. Seguindo as experiências do fotógrafo Lourenço, António José Leite aventurou-se na cinematografia. A imprensa referiu um documentário da sua autoria, sobre as festas comemorativas do 11 de Agosto na Praia da Vitória, em 1929, cujo paradeiro se desconhece.