(Aviadores)
PENTEANDO A MEMÓRIA 43
O AVIÃO QUE CAIU EM SANTA BÁRBARA
CARLOS ENES
Durante a década de ´50, andavam em circuito, em roda da ilha, alguns velhos pedintes. No seu itinerário, passavam de vez em quando pela Vila Nova. Nas conversas que metíamos com eles, ficámos a saber que tinham uma pequena estrutura de apoio montada ao longo das freguesias. Se nalgumas havia quem lhes oferecesse cama, noutras recorriam a um palheiro, onde descansavam os costados.
O Velho das Cinco, por ser das Cinco Ribeiras, era um homem alto, forte, com barba de poucos dias, um grande sobretudo sempre vestido, independentemente da estação do ano, botas grandes já carcomidas, uma saca às costas e um bordão, onde se amparava. Homem de poucas falas, mas afável para as crianças.
O outro era o Velho João de Santa Bárbara. Pequenino, olhar esgazeado, de pé descalço, casaco e calças de cotim remendadas, bordão e saca às costas. Parava sempre em minha casa, para uma refeição. Mas era ele que definia as regras, que julgo deviam ser iguais em todo o lado. Da saca retirava marmelada, queijo, um lata com folhas de chá, outra com açúcar e rebuçados que distribuía pelas crianças, quando as havia. À dona da casa pedia apenas água para o chá e um naco de pão. Quando lhe ofereciam uma sopa não recusava e ficava duplamente agradecido.
Antes de iniciar a refeição, punha-se de pé e fazia as suas orações, pedindo a colaboração dos presentes. Entre as várias Ave-Marias, uma era pela saúde dos donos da casa, outra pela alma dos seus e uma muito especial, “por alma do avião que caiu em Santa Bárbara” (sic), coisa que sempre me intrigou.
A curiosidade acompanhou-me ao longo da vida e o acontecimento ficou esclarecido com a junção destas fotografias e as notícias recolhidas na imprensa local na imprensa local.
Como sabemos, por altura da II Guerra Mundial foram enviadas para a Terceira forças militares com o objetivo de contribuir para uma possível defesa, em caso de ataque. Entre essas forças, contavam-se pilotos aviadores, cujas aeronaves utilizavam a então Base Aérea 5.
Num das suas missões de treino, sobrevoaram a ilha num dia de nevoeiro intenso, à volta da serra de Santa Bárbara, onde o avião embateu a 9 de Abril de 1943. Desaparecido numa sexta-feira, as pesquisas efetuadas durante dois dias foram infrutíferas, até que um pastou trouxe a notícia para São Bartolomeu, dizendo que havia encontrado o avião desaparecido, na encosta sul do Pico de Catarina Vieira.
Avisadas as autoridades, seguiram para o local as autoambulâncias, com pessoal do serviço de saúde, outras camionetas com militares e respetivas autoridades. No interior do avião encontravam-se, já sem vida, o cabo-piloto Fernando Gomes da Costa e o cabo-radiotelegrafista José Duarte Pacheco de Mendonça.
Os corpos recolhidos foram levados para o Hospital Militar de Angra, sendo depois transportados para a igreja da Sé, onde se celebraram as solenes exéquias, com missa de corpo presente.
“A todos comoveu o drama desses rapazes roubados à vida”, como referiu a imprensa, mas o funeral proporcionou a montagem de um cerimonial em que se agregou o sentimento de dor próprio do momento, com a exaltação do patriotismo, característica muito própria do regime em vigor.
Marcaram presença as forças militares existentes na ilha, a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa e a Brigada Naval; da sociedade civil, sobressaíam senhoras, crianças das escolas, transportando coroas e ramos de flores, mas também representantes dos sindicatos e sociedades recreativas.
O comércio cumpriu a tradição de manter meia-porta fechada, em sinal de luto, e encerrou as portas durante a passagem do cortejo fúnebre. Todas as repartições públicas e estabelecimentos de ensino suspenderam os seus serviços durante o funeral, ficando as bandeiras a meia-haste.
As urnas, cobertas com a bandeira nacional, saíram da igreja da Sé a caminho do cemitério do Livramento, num imponente cortejo, com duas grandes alas de soldados, autoridades militares, civis, religiosas e elementos da população. À porta do cemitério foram executadas as manobras miliares, com disparo de tiros. Os corpos depositados num jazigo particular seguiram depois para Lisboa.
A imprensa, embora lamentando a perda das vidas, não deixou passar a ocasião para enfatizar o espírito patriótico da missão dos aviadores:
“Que glória maior podiam eles ambicionar, como soldados portugueses, que não fosse a de morrer ao serviço de Portugal? Sim, para eles, decerto, foi a maior glória.”
Se os malogrados jovens estariam ou não de acordo com a opinião do jornalista, é coisa que não sabemos. O que posso confirmar é que o Velho João, de Santa Bárbara, nunca se esqueceu deles nas suas orações.