PENTEANDO A MEMÓRIA 46
CARLOS ENES
A PRAIA LIBERAL
Estamos a entrar nos festejos de mais um aniversário do acontecimento que colocou a Praia num lugar cimeiro da história de Portugal. Refiro a vitória dos liberais sobre os absolutistas, quando estes tentaram desembarcar as suas tropas na baía.
A história explica-se em poucas palavras. Em 1820, eclodiu em Portugal uma revolta que alterou o regime político. Até então, o poder exercia-se de forma absoluta, numa sociedade em que as leis não eram iguais para todos. Este poder absoluto foi derrubado pelos liberais que pretendiam uma sociedade mais justa, mais livre, onde os poderes estivessem separados – legislativo, executivo e judicial – e não houvesse discriminação perante a lei.
Liberdade, Igualdade e Fraternidade era a divisa que já havia sido erguida por alturas da Revolução Francesa (1789) e que guiou todos os movimentos liberais. Tratava-se no fundo de instaurar a ordem burguesa que, em termos ideológicos, representava um passo em frente em relação ao regime absolutista.
Depois de derrotados, os absolutistas conseguiram virar os acontecimentos a seu favor. Na pessoa de D. Miguel encontraram o protagonista para os seus intentos. Deste modo, dois irmãos, D. Pedro (liberal) e D. Miguel (absolutista), enfrentaram-se durante alguns anos. Problemas de sucessão do trono levaram a que D. Pedro entregasse o poder ao irmão, com a condição de este governar de acordo com a Carta Constitucional (1826) e casasse com a sobrinha, D. Maria, quando esta atingisse a maioridade. Resultado: D. Miguel não respeitou o acordo e governou à maneira antiga.
Como resposta a esta situação um grupo de liberais na Terceira proclamou a Carta Constitucional e, em pouco tempo, tomou conta da ilha. Angra passou a ser a capital do liberalismo, enquanto o resto do país ainda obedecia a D. Miguel. Para aqui vieram os exilados que haviam fugido para Inglaterra e França, com o objetivo de se organizarem e reconquistarem o Continente.
Foi neste contexto que D. Miguel preparou uma armada para submeter os rebeldes na ilha Terceira. E saiu-se mal. Os seus homens tombaram no areal da Praia, no dia 11 de agosto de 1829. Uns anos depois (1832), D. Pedro já estava nos Açores para comandar o exército que ficou conhecido como os Bravos do Mindelo.
Foi na sequência desta jornada liberal que a Praia recebeu o sobrenome de Vitória e o título de Muito Notável, no ano de 1837. O brasão de armas tinha a legenda de 11 de agosto de 1829, mas foi radicalmente alterado pelo Estado Novo. As referências evocativas do período liberal desapareceram para dar lugar a um leão cercado por duas palmas.
(Missa campal 1929)
O dia 11 de agosto passou a ser comemorado na Terceira como dia de Grande Gala, até se transformar em feriado do município praiense com a implantação do regime republicano. No período do Estado Novo, a memória liberal foi sendo apagada e o feriado passou para o dia 24 de Março, data em que Francisco de Ornelas havia proclamado D. João IV, como rei de Portugal. Depois do 25 de Abril, houve nova mexida nos feriados e a Praia voltou a vestir as suas roupas liberais, recuperando o 11 de agosto.
Na ocasião do I centenário, a Praia comemorou com grande pompa a efeméride. Ergueu a estátua da Liberdade no, então, Largo 11 de Agosto, editou o livro “Memorial da Praia”, coordenado por Vitorino Nemésio, e esteve em festa durante três dias, numa iniciativa da Comissão Administrativa da Câmara Municipal. O Governo também se associou, enviando dois navios de guerra que ancoraram na baía, onde estiveram iluminados. As ruas foram embandeiradas, bem como algumas fachadas de prédios, e ornamentadas com colgaduras, festões e flores.
A festa iniciou-se no dia 10, com a bênção do novo estandarte do município, desenhado e pintado por Abraham Abohbot (ver foto). Prosseguiu com música tocando pelas ruas, provas de natação e distribuição de esmolas a 100 pobres. À noite houve iluminação e arraial.
No dia 11, pelas seis horas da manhã, troou uma salva de 21 tiros, a partir dos navios, seguindo-se a alvorada tocada pelas filarmónicas. Os forasteiros foram recebidos por meninas e senhoras que lhes ofereciam flores em troca de um donativo para as casas de caridade. Recebidas as autoridades no edifício do tribunal, organizou-se um cortejo em direção ao areal, onde se celebrou missa. O cortejo voltou ao Largo 11 de agosto para a inauguração da estátua. O dia encerrou com discursos na Câmara e iluminação. No dia 12, depois de jogos de futebol, houve tourada no areal e um sarau musico-literário.
A comemoração teve eco no Continente com uma exposição bibliográfica e iconográfica no Museu da Marinha, e na imprensa surgiram vários artigos, com destaque para O Século que dedicou uma página inteira à Praia da Vitória.
É neste enquadramento histórico que decorrem as festas da Praia que, de ano para ano, marcam presença de relevo no panorama das festas açorianas.