INTRODUÇÃO Em 1996, iniciámos um projecto de identificação dos adágios portugueses mais conhecidos actualmente no Arquipélago dos Açores. Ao incluir as comunidades açorianas radicadas nos Estados Unidos da América, quer na costa leste (Massachusetts e Rhode Island), quer na oeste (California), pudemos analisar o grau de preservação da herança paremiológica na diáspora. Os resultados da recolha e análise dos dados obtidos em S. Miguel, nos EUA e no Grupo Central do nosso Arquipélago encontram-se já publicados, respectivamente nos primeiros três volumes da série Pérolas da Sabedoria Popular Portuguesa, inserida na Colecção Garajau das Edições Salamandra (Lisboa).
Um provérbio deve ser conhecido e usado por uma faixa significativa da sociedade. Como não existem estudos fiáveis sobre este aspecto, no que respeita aos provérbios portugueses, tivemos de colmatar a ausência de dados estatísticos que comprovem o conhecimento e uso generalizado de cada texto contido nos nossos adagiários. Para tal, adoptámos uma metodologia que se baseia na elaboração de questionários, nos quais apresentámos, a um leque diferenciado de pessoas, um conjunto de potenciais provérbios para reconhecimento.
Seleccionámos as respectivas entradas a partir de uma compilação de vinte e cinco mil para cerca de vinte e dois mil exemplares, retirados de vários adagiários portugueses. Através uma exaustiva análise estatística dos nossos questionários, cristalizámos cerca de 500 provérbios canónicos, em São Miguel, 645 no Grupo Central e 700, no contexto da emigração açoriana nos EUA, reconhecidos por mais de 50% dos nossos inquiridos. Com base em alguns estudos suplementares, demonstrámos que os nossos dados são fiáveis e representativos dos grupos sociais a que pertencem os nossos entrevistados.
Através da selecção dos exemplares mais conhecidos, podemos identificar o conjunto dos provérbios com maior expressão numa comunidade, bem como as suas variantes mais significativas.
O tratamento das variantes não foi, até ao momento, devidamente equacionado no âmbito da paremiografia portuguesa. Armando Côrtes-Rodrigues, por exemplo, registou no Adagiário Popular Açoriano quer a forma "Comem os olhos primeiro do que a boca", quer "Primeiro comem os olhos do que a boca" como provérbios da ilha de São Miguel. Como, nesta ilha, a percentagem de reconhecimento da última configuração sintáctica é superior à anterior (62,5% vs 52,6%), considerámos "Comem…" como variante de "Primeiro…", no âmbito do primeiro volume da já referida série "Pérolas da Sabedoria Popular Portuguesa". Nos EUA, como se regista no segundo volume do nosso Adagiário, esta situação inverte-se, dado só a primeira forma ter sido reconhecida.
No Grupo Central, e no terceiro volume da série supracitada, nenhuma das duas frases foi considerada como provérbio, uma vez que não ultrapassam aí, em média (com 36,77% e 29,69%, respectivamente), a barreira dos 50%, nem tão pouco superam o limite dos 60% em qualquer uma dessas ilhas. Os valores mais aproximados são 54,55%, em S. Jorge e 58,82%, na Graciosa, para o primeiro exemplar.
Temos de destacar o facto de, sem os referidos dados estatísticos, não existir justificação para considerar uma forma como a variante da outra. Quando se elimina as variantes menos expressivas, ocorre o problema de se conhecer só uma variante, como a primeira frase do exemplo anterior. Nestas circunstâncias, dificilmente se encontrará a forma pretendida numa colectânea organizada pela ordem alfabética das primeiras palavras do provérbio, pois ninguém vai procurar na letra "p" um texto proverbial que, na sua opinião, se inicia com a letra "c".
Adoptando o sistema de ordenação por palavras-chave, recolhemos, inicialmente, todas as palavras do conjunto dos provérbios seleccionados, apresentando-as, depois, na sua forma primitiva (verbo no infinito, substantivos e adjectivos na forma do masculino singular) e ordenadas alfabeticamente, juntamente com os exemplares que as continham. Encontra-se, assim, subordinado à palavra-chave "abrir" o ditado popular: "Nunca Deus fecha uma porta que não abra outra".
Omitimos algumas palavras, dada a sua repetição e irrelevância para a identificação do provérbio (essencialmente os artigos, alguns pronomes, preposições, conjunções, advérbios e verbos, como "ser"). Encontrar-se-á, por conseguinte, um provérbio como "Quem não se sente não é filho de boa gente." relacionado com os seguintes itens "bom", "filho", "gente" e "sentir".
A redundância do registo proverbial, como nos exemplos dados, justifica-se especialmente em casos onde a forma padrão se distingue de uma variante não só por transposições de palavras, mas também pela sua substituição ou omissão e ainda por sinónimos.
OS PROVÉRBIOS AÇORIANOS NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA Em 1996, iniciámos um projecto de identificação dos adágios portugueses mais conhecidos actualmente no Arquipélago dos Açores. Ao incluir as comunidades açorianas radicadas nos Estados Unidos da América, quer na costa leste (Massachusetts e Rhode Island), quer na oeste (California), pudemos analisar o grau de preservação da herança paremiológica na diáspora. Os resultados da recolha e análise dos dados obtidos em S. Miguel, nos EUA e no Grupo Central do nosso Arquipélago encontram-se já publicados, respectivamente nos primeiros três volumes da série Pérolas da Sabedoria Popular Portuguesa, inserida na Colecção Garajau das Edições Salamandra (Lisboa).
Os dados recolhidos nos Estados Unidos da América revelam-se manifestamente valiosos para percebermos a transmissão insular dos provérbios no passado. Partindo da ideia de que a distância entre a California e a costa leste impede uma interligação entre as comunidades açorianas aí residentes, podemos concluir que os hábitos comuns dos nossos emigrantes são determinados pelas tradições trazidas das suas terras de origem. Daí que os exemplares considerados como provérbio, em ambas as costas norte-americanas, o fossem também em São Miguel ou nas ilhas do Grupo Central, de onde provêm predominantemente os inquiridos da costa leste e os da California, respectivamente.
O cruzamento dos dados obtidos nos Açores e nos EUA é também útil para a avaliação dos resultados da análise dos mesmos, possibilitando esclarecer se um resultado é meramente uma expressão de uma anomalia estatística ou de uma realidade linguística existente. Deste modo, é possível afirmar que, por exemplo, "A carapuça é para quem serve" é, na verdade, um provérbio açoriano, em vez da versão "A carapuça é para quem a põe".
Confirmámos também a nossa tese da inclusão, nos Adagiários, de variantes inadequadas, como "Abril águas mil, coadas por um mandil, e em Maio três ou quatro". Neste caso, quer nos Açores, quer nos Estados Unidos da América, os inquiridos preferiram a forma "Abril águas mil". Como nas zonas da emigração as formas antigas têm um bom grau de preservação, podemos concluir que o encurtamento do referido exemplar não será provavelmente o resultado de um desenvolvimento recente.
As nossas conclusões baseiam-se no facto de a grande maioria dos exemplares testados nos dois lados do Atlântico apresentar tendências estatísticas comuns. Daí que as diferenças revelam um dado significativo, como o desaparecimento do provérbio "Abril chuvoso, Maio ventoso, fazem o ano formoso" na zona de emigração, contrariamente ao que acontece nos Açores. Tal ocorrência indica uma descontextualização de alguns provérbios, sobretudo os ligados a características ambientais de uma determinada região. Um outro ditado, "Quem paga não deve", identificado por 65% dos informantes micaelenses, contraria demasiado o hábito americano de se recorrer ao crédito, uma vez que mantém um conhecimento pouco superior a 25% na costa leste e 17%, na oeste. Da mesma forma, suspeitamos que o provérbio açoriano "Quem nasceu para pobre não chega a rico" contradiz o sonho americano, razão por que, na costa leste, atinge uma taxa de conhecimento de 35% e, na California, 0%. É importante, por isso, rever, em estudos futuros, quais os conceitos que mantêm o seu significado, revelando, simultaneamente, experiências interculturais.
No entanto, encontrámos igualmente, nos EUA, vários exemplares outrora conhecidos no Arquipélago, mas que, hoje em dia, se encontram em vias de extinção.
A nossa colectânea é, assim, uma viagem não só ao continente americano, mas também ao passado dos Açores. A comparação entre a situação no Arquipélago e nas comunidades de emigrantes afigura-se como um importante meio de esclarecimento das questões atrás expostas, que decorrem de uma reflexão sobre o relacionamento entre pensamento, língua e contexto situacional.
Gabriela Funk é Professora Auxiliar de nomeação definitiva do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores. Licenciou-se nesta Universidade em 1981, em Estudos Portugueses e Ingleses, tendo depois prestado provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica em 1985 e de Doutoramento, em 1994. Desde 1996 é responsável de um projecto alargado sobre Cultura Popular. É igualmente coordenadora de um novo adagiário popular açoriano, que conta já com três volumes publicados, com o título genérico Pérolas da Sabedoria Popular Portuguesa, sendo o primeiro dedicado aos provérbios de S. Miguel, o segundo, ao adagiário açoriano nos EUA e o terceiro, aos ditados populares do Grupo Central do Arquipélago dos Açores. Foi co-autora de um Manual de Língua Gestual Portuguesa, intitulado A Magia do Silêncio: Como falar com as mãos, publicado em Ponta Delgada, em 1999, bem como de uma obra sobre Gramática da Língua Portuguesa, com o título Explicações de Português (Editora ASA, 2004) e de um Dicionário Prático de Provérbios Portugueses (Edições Cosmos, 2008). Em 2005, publicou um texto dramático intitulado Os Agentes da Ordem Gramatical (Editora ASA) e, em 2006, um trabalho de criação literária, As Asas do Açor (Instituto Cultural de Ponta Delgada).
Irene Maria F. Blayer
27-07-2008