Os gregos, que sabiam tudo (ou quase tudo) o que o Ocidente precisaria de saber no futuro, criaram os deuses à sua imagem e semelhança e colocaram-nos no Monte Olimpo. A 3000 metros de altitude, eles podiam tocar o céu e, ao mesmo tempo, deixavam os homens a uma distância respeitável, suficiente para dar a estes últimos alguma tranquilidade de espírito e liberdade de acção. Coisas do Mediterrâneo.
No Atlântico, os europeus que chegaram às Canárias encontraram um povo que também tinha a sua montanha sagrada; para os guanches de Tener-Ife (literalmente, o «monte de neve»), o Teide era o suporte do céu e dava morada a espíritos maléficos e ao génio do mal (Guayota). Neste caso, o imaginário cultural do futuro tinha uma base de apoio no universo histórico e mítico dos guanches (e conhecem-se alguns bom resultados dessa revisitação do passado por parte dos contemporâneos).
Os europeus que chegaram aos Açores não dispuseram de uma base cultural local da qual arrancasse a configuração mítica da sua Montanha Maior (diga-se, em compensação, que também não precisaram de passar um século a exterminar populações antes de se poderem instalar no novo território). Tiveram, por isso, de construir ao longo do tempo essa «imagem imaginada» do vulcão, pela palavra, pela música, pelas duas em conjunto, pela representação gráfica e pictórica. Do registo verbal anónimo, que é o da cultura popular, à consignação individualizada, que é a do autor publicamente reconhecido, dispomos hoje de um largo acervo de textos que atestam o modo como cada um pôde, à sua maneira, exprimir a experiência do seu contacto com a Montanha do Pico. Houve os que passaram por cá e, mesmo na brevidade da demora, foram tocados pela força da Montanha. Houve também os que, não tendo saído, souberam olhar a verdade dela, o seu mistério, para lá das sombras e dos contrastes. Houve ainda aqueles que, tendo saído, transportaram a Montanha como dote pessoal e intransmissível, capaz de sobreviver aos embates do grande mundo. E houve, finalmente, os que chegaram e se deixaram ficar, como se a Montanha fosse a casa desde sempre procurada.
«Pico.Poética da Montanha» o livro que aqui nos traz hoje, é um sinal de tudo isso.
Depois de Victor Hugo Forjaz e Zilda França terem trazido a público as fotos de Lurdes Oliveira, dando-nos a conhecer a «mística» da Montanha («Nuvens e Mística do Vulcão do Pico», 2006), Adélia Goulart, Cisaltina Martins e Maria Norberta Amorim trazem-nos agora uma «poética» da Montanha.
A poética de que aqui se fala não tem que ver com o conjunto de regras e dispositivos que deviam levar por bom caminho técnico todos aqueles que se aventuravam pelos caminhos da poesia. Esta poética da Montanha é sobretudo a manifestação, em prosa ou em verso, das emoções e projecções subjectivas suscitadas pela contemplação da Montanha do Pico. Excertos do cancioneiro popular açoriano juntam-se a textos de duas dezenas de autores, mais discretos uns, mais mediatizados outros e às vezes por razões não propriamente literárias: Joseph e Henry Bullar, Vitorino Nemésio, Raul Brandão, Pedro da Silveira, Almeida Firmino, Manuel Alegre, Tomás da Rosa, António Sebastião Goulart, Cisaltina Martins, Manuel d’Arriaga, Conceição Maciel, José Enes, Ezequiel Moreira da Silva, Pe. José Pereira da Silva, Mário Machado Fraião, Victor Rui Dores, Maria Orrico, Bernardo Maciel, Alberto Correia. No conjunto, eles deixam-nos uma diversidade de registos, entre o quase relato ou a descrição objectiva, por um lado, e a efusão emotiva ou a indagação do mistério e o secreto da Montanha, pelo outro. Por vezes, os textos dialogam de forma mais directa com as fotos que lhes ficam ao lado, noutros casos deparamo-nos com percursos paralelos, os das fotos e os dos textos, mas em qualquer caso dando-nos sempre uma imagem mutante da Montanha, do seu perfil fugidio.
Parafraseando, distorcendo os versos de Conceição Maciel escolhidos por Alberto Correia para a epígrafe da sua introdução, talvez se possa também dizer : «Ninguém passa por ti, Pico, //sem te levar no coração».
No séc. XIX, Chateaubriand viu na Montanha um «inútil farol de noite, sinal sem testemunha de dia». O «inútil farol» continua a projectar sobre os que o avistam o poder do seu fascínio, a atracção do seu mistério indecifrável. Sobre os autores que encontramos neste livro, em particular. E sobre muitos outros ainda. Porque antologiar é escolher e escolher é excluir. É por isso que com esta «Poética da Montanha» está agora aberto caminho para novos projectos, de maior dimensão, de outro género talvez: uma colectânea de textos sobre a Montanha e sobre a ilha em geral, textos documentais, notas de viagem, textos ficcionais em prosa ou verso – que nos deixassem, e a quem nos visita, o retrato de uma ilha vivida entre o real e o imaginário, entre a experiência e a sua transfiguração literária. Para não ir muito longe no tempo, poderíamos ver aí textos de João de Melo ou Cristóvão de Aguiar, de Vasco Pereira da Costa, de Dias de Melo e José Martins Garcia, de Antonio Tabucchi, de Carlos Faria em S. Jorge abrangendo no mesmo olhar a ilha do Pico e o seu poeta Almeida Firmino; de Joshua Slocum e o seu comovente episódio do «António do Pico»; de Nemésio e as anotações impressivas do seu «Corsário»; de Enrique Vila-Matas e as suas visões melancólicas, angustiadas ou irónicas do Pico (no interior de cujo vulcão, como no das Canárias, afinal, vivem espíritos do mal que conspiram contra a literatura). E esse seria um projecto onde caberia a visão deslumbrante do nascer do sol no cimo da Montanha descrito de modo a dá-lo a conhecer a um cego, tal como acontece no romance de Maria Orrico (de que um fragmento foi incluído neste livro).
A Ilha e a Montanha merecem isso. Nós também. Cabe-me deixar aqui o desafio.
S. Roque do Pico, 29 de Julho de 2010
Notas sobre o Autor:
Manuel Urbano Bettencourt Machado (1949),É natural da Ilha do Pico,vive em Ponta Delgada. Professor da Universidade dos Açores. Um dos mais expressivos escritores contemporâneos açorianos.
Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. É professor Assistente Convidado na Universidade dos Açores,no Departamento Línguas e Literaturas Modernas, onde tem lecionado entre outras, as disciplinas de Introdução aos Estudos Literários, Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa e Literatura Açoriana.
Uma produção literária vigorosa:Poesia,Narrativas e Ensaio. Seu mais recente título: Que paisagem apagarás. Narrativas.Editor: Publiçor,julho de 2010