POBREZA
A pobreza é dos poucos tabus contemporâneos. As pessoas não têm vergonha de falar de nada, diante de seja quem for, na televisão ou no Facebook: nem de sexo, nem de aborto, nem de eutanásia… mas quase ninguém consegue dizer “Eu sou pobre”, e muito menos assumir não querer ser rico – e contam-se pelos dedos de uma só mão aqueles que desejam ser pobres. Este facto é a prova do grau em que o capitalismo nos traz cativos.
Não se pense que os partidos políticos de esquerda e que os sindicatos escapam à regra. Falar dos pobres em abstrato não custa nada; é como falar do cancro em abstrato ou confessar: “Estou canceroso”. Para além disso, quase sempre quando se fala da pobreza em política visa-se combatê-la. Isto é, a pobreza é encarada como um mal pessoal e social. De certa forma, o discurso dos “defensores dos pobres” é mais cruel do que o discurso capitalista – ao menos o capitalista não tenta acabar com os pobres, enquanto que a esquerda não tolera a ideia de que uma pessoa possa ser pobre e feliz. É sabido que o comunismo é o último degrau do capitalismo, Marx dixit. É farinha do mesmo saco.
Nem sequer os católicos escapam à doença “fin-de-siècle”. Não é preciso ser Jesus Cristo para elogiar a pobreza e afastar a riqueza; muitos outros sábios antigos e modernos o fizeram. Mas torna-se deveras confrangedor ver um crente baralhar os valores do Reino com os valores do mundo, tanto mais que se trata da salvação da alma. É urgentíssimo rever o Catecismo. Até há bem pouco tempo as coisas eram bem diferentes.
Proust conta que a princesa de Parma, cuja ascendência entrava para além do portões do Paraíso, esforçava-se para ser a pessoa mais simples e humilde de todas, com vergonha de ter recebido tanto em herança. Quem não a conhecesse, tomá-la-ia por uma provinciana. A verdadeira aristocracia era assim, pois era crente: sabia-se irmã dos mais pobres, filha do mesmo Pai – e tinha muito presente o discurso de Jesus Cristo. Não era fino ostentar; aliás, “novo-rico” ainda é sinónimo de “grosseiro”. E, no campo, a vida dos ricos quase não se distinguia da dos pobres. Mais depressa se escondia a riqueza do que se a mostrava. O critério era sempre o mesmo.
Vamos a ver: do que é que um pobre se deve envergonhar? De ser feio? Há pobres lindos de morrer! De ser pouco inteligente e inculto? E que dizer de muitos génios pobres como Job?! De ser mau? E S. Francisco, e Madre Teresa de Calcutá?! Onde é que está o mal de ser pobre? O que lhe faz falta? Porque é que exemplos como os de Agostinho da Silva deixam o homem moderno sem pinga de sangue?
Por incrível que possa parecer, toda a gente sabe a resposta: é porque a riqueza é um valor relativo, e não absoluto, como o capitalismo pretende. Verdadeiramente, não adianta nem atrasa em nada de essencial. Depende de mil e um fatores. Um rico português é pobre na Alemanha, mas uma alma boa vale o mesmo em Portugal e na Cochinchina. O poder do dinheiro é uma ilusão. Toda a gente sabe disto! Toda a gente!
São Paulo tem aquela passagem onde declara que aprendeu a viver com pouco e com muito, sem se deixar perturbar ou pela pobreza ou pela riqueza. É obra! É de homem! Que lição! Nem sequer tem medo de ser rico! Vai uma aposta que o rico, se for inteligente (pode não ser…), invejará esta liberdade?! Parece que Bill Gates tem tentado desfazer-se de parte da sua fortuna… mas ela cresce sempre mais, como na história do rei Midas. Pobre homem rico!
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu último livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.