CHOVE na glória expressa dos teus
olhos e uma ave quebra
o rumo para mim
partes pedaços de estrelas
não permites a lua
cheia e as nuvens obedecem
ao fogo da saudade
não me sei submeter ao sol
sem a sombra do teu
corpo
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TENS DUAS MÃOS quentes
dez dedos escuros podiam dedilhar
o meu corpo devoluto
tens um coração e dois
olhos como toda a gente mas não sei
o que te reveste de tão puro que ficas
parecido com a lua
*****
O MEU CAMINHO é o meu ninho.
durmo nas paredes mais largas, cubro-me
de folhas que sobraram à última estação, sento-me
em sobras de troncos, respiro
a aragem deixada pelo voo dos pássaros
e vivo.
Estou só e ferida.
Os gatos arranharam-me numa brincadeira
perigosa, os pássaros debicaram-me aflitos
e tu não apareceste
para me salvar
da intensa exposição solar.
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UMA PEQUENA porção de noite
duas ou três estrelas
mais um fio de lua
crescendo e os teus lábios
ajustam os meus.
SEGUNDA-FEIRA DA SERRETA
um passeio na falésia
da ilusão, é a minha vida
uma folha de tília
para guardar a promessa. choveu
perfume nesta peregrinação
ao Olimpo – nada posso fazer
à face molhada, que te exponho,
numa atitude de giotto
RUA DE ÁRVORES COM GATO BRANCO
uma luta grade domina a sépia dos pátios
e obedece à sombra recta na rua dos gatos
com árvores frescas ruinosas. como se uma árvore
fosse matéria de ruína e uma ruína fosse um gato
na rua, junto aos pátios frios
e, tu, Túlio, gato branco, atravessasses súbitos saltos
para atacar o silêncio da rua com lua e árvores.
é aqui que os cães te ladram
enquanto destilam ruinosos símbolos de viúva
e é de mim que eles não te expulsam:
é desta rua e destas árvores que foges mais branco.
és o animal que pula do meu colo
assustado por um passado de dedos cruéis,
fechas os olhos num único risco e pergunto-me
quando serás capaz de florir no meu jardim,
e ficar sob as minhas mãos, escolhendo nelas
a tua casa, cheirando em mim o abrigo feliz.
DESEJO
flutuo à volta da tua imagem
e não encontro um erro:
apenas o veludo onde me apetece
esquecer os lábios
O TEU OLHAR
O perímetro da tua íris
é de dois milímetros
tens vinte e três sinais no rosto
umas pestanas com meio centímetro
e uma testa que aceita o comprimento
do meu polegar.
Nestas medidas
alinhas o sorriso do rapaz
que percorria o horizonte por escalar
e ainda ostentas a expressão
de quem olha para além da fuga
enquanto o tempo te vai passando.
Os dois milímetros escuros das tuas íris
brilham tanto que me posso ver
reflectida nos teus olhos.
O MISTÉRIO DOS LIVROS
O teu corpo esconde o mistério
de mil livros – a justiça das leis
por incendiar, nesta honesta batalha por ti.
Mas eu não tenho armas.
Só luto com os dedos doridos – procuro
a tua forma original, o dilúvio, a lava que se encobre
na pedra fria que me cerca.
E o teu corpo, sob a roupa, estremece
em cada letra que te escrevo
com pseudónimo.
BIOGRAFIA
Luísa Ribeiro
Sépia com mar ao longe
Nasci no segundo andar duma casa numa rua da cidade de Angra, onde não havia o perfume das laranjeiras, nem o cheiro a relva acabada de lascar. Uma casa com janelas viradas para outras janelas de outras casas iguais; casa de muitas tias, com Pai e Mãe e onde a única sombra me era dada pela magia dum irmão mais velho – irmão que me enchia os olhos de livros e medos.
E foi neste meu pulsar de criança que se espalhou a luz e que, num segredo nocturno, fui procurando as curvas das palavras que melhor desenhariam um fecundo percurso de lágrimas.
Aprendi o monólogo. E, sem nunca deixar a cidade onde nasci, limitei-me a passar por estes enigmáticos canais – veias da vida – exibindo sempre o desejo de transformar beliscões em carícias e de, ao fazê-lo, ir dando ao papel o verdadeiro encontro com a existência.
Não fiz mais do que me agarrar à lua, para espalhar o sangue e receber as pedras e brincar ao fogo e acumular as raízes e alcançar a infância dos filhos.
Sou aquilo que o tempo exige que eu registe: quando encontro a claridade procuro a sombra para descobrir o desassossego e quando encontro o desassossego, procuro a claridade para perseguir a sombra.
E neste vento, às vezes tempestade, passei quatro décadas sustentando a ilha num eterno passeio entre a terra que me gerou e a terra que me receberá, num dia de sépia com mar ao longe.