(EVA NA PRAIA – Mário Cabral, 2014)
POESIA
Mário T Cabral,
29 de Junho AD 2014
Talvez que a maior diferença entre a poesia contemporânea e a tradicional resida na substituição do ouvido pelo olho. No geral, a poesia antiga vive da musicalidade das palavras, através da rima, da métrica, da estrofe e de todos os demais artifícios literários que ponham em destaque o facto de a língua ser constituída de sons. E, no geral, a poesia contemporânea está mais empenhada na relação surpreendente que duas ou mais realidades distintas possam revelar analogicamente entre si, desprezando, por isso, toda a subserviência a formatos estereotipados, que possam impedir a liberdade da associação de ideias.
O ouvido latino também não apreciava a rima simples, de sabor popular (e a poesia é uma das mais excelentes manifestações culturais da Roma antiga). Ou seja, o verso branco não significa nem decadência, nem facilidade, nem sequer abandono do ritmo e da harmonia, que podem surgir de maneira mais subtil. Ao invés, a poesia contemporânea está mais apta a concretizar a natureza da Grande Poesia, que é a de ser, quiçá, o discurso por excelência. No dia-a-dia, a linguagem é prática; na filosofia e na ciência, o conceito é a tentativa do homem dominar a realidade – mas o poeta de génio esforça-se para que seja a realidade a dar-se na linguagem humana, para surpresa do próprio homem.
Não admira, pois, que a poesia contemporânea baralhe a maior parte das pessoas, que nem a respeitam. Para agravar este divórcio, vive-se uma época tecnicista, cada vez mais longe do valor simbólico e metafórico. Paradoxalmente, a poesia contemporânea teria conhecido maior sucesso numa época mais religiosa – pois a religião é, juntamente com a mundividência infantil, o espaço aberto para a receção humilde e prazerosa daquilo que nos transcende, portanto, irmãs gémeas da poesia. Heidegger compreendeu-o na perfeição: em tempo de trevas, o poeta traz-nos a luz, ou, pelo menos, a esperança da luz. O seu trabalho é o de um herói, ou sacrificado, tanto mais quanto aparece, aos seus, como um traidor.
Claro que nem todos são Herberto Helder ou Fiama Hasse Pais Brandão. Mas também nem todos foram Camões, no tempo dos sonetos. É tão fácil aldrabar o jogo da poesia contemporânea como o foi fazendo alexandrinos – ou talvez seja mais difícil, por ser aquela mais atenta ao essencial do que esta. O tempo purgará as fraudes, que se desmascaram, não pelos erros formais, como outrora, mas, precisamente, pela associação das ideias: quando estas são demasiado explícitas (como na poesia engagée, por exemplo), ou, ao contrário, quando as analogias são demasiado subjetivas, ou, então, abstratas.
A exemplificar tudo o que fica dito, sugira-se a leitura Do Natural: um Poema Elementar, de W. S. Sebald (Quetzal: 2012). A elegância e o requinte aristocráticos com que este autor alemão se aproxima da cultura são, só por si, critério de poeticidade, escreva ele no género que bem quiser, seja romance ou ensaio. Aliás, há pintura poética (Fra Angelico, Chagall), há cinema poético (Tarkovsky, Oliveira), etc. Ao pé de Sebald, o especialista disto e daquilo parece um adolescente bem comportado, mas não, seguramente, uma pessoa culta. É prima água, é escol. O resto é menos humano, para não dizer mesquinho.
Estes versos poderiam ser outros, de tão aleatórios que parecem; talvez, até, pudesse ser “prosa poética”… e, no entanto, ao terminar, reconhece-se a forma significante. O que interessa é o relâmpago, o rasgão que abrem no cenário habitual, o milagre com que dão a ver aquilo que estava mesmo ali, mas em que ninguém reparara. É então que se começa a ouvir a música dos anjos, que jamais será esquecida.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007.
Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.
Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.