Uma arte que atravessa o Atlântico e vai buscar na outra margem, no porto açoriano de suas memórias ancestrais, na Ilha Terceira – a “terra do bravo” – o elo etnogenealógico do Boi da farra do boi. A revivificação da “tourada à corda,” práticas ritualísticas açorianas, no espaço dionisíaco da Ilha de Santa Catarina. Expressão cultural identitária sobrevivente e fortalecida. A farra reprimida pela lei liberta o ilhéu pela força da tradição. A farra da transgressão do homem que desafia, brinca com a fúria do animal que é toureado. A Semana Santa é tempo da farra de boi na Ilha. O ritual rompe limites e chega seu ápice entre a madrugada do sábado de Aleluia e o domingo de Páscoa quando o boi imolado tem sua carne partilhada pelos farristas.
Tudo se configura numa visão surrealista da insular paisagem, cheia de mistério, no cenário telúrico visceral, repleto de saudade de um lugar seu, utópico, talvez uma outra ilha presente ou habilmente insinuado como num jogo de sedução, na dialética dos tons quentes e frios, perenizados, pela sensibilidade do artista-poeta. Estilo que se identifica na temática “Poética do Boi”, no rigor da criação, na inspiração de cada quadro, provocando a mesma tensão, como um chamado à sua fruição.
O folguedo do Boi-de-Mamão, popular manifestação cultural do litoral catarinense, completa esta coleção da poética do Boi da Ilha de Santa Catarina. A energia da dança coletiva integra movimentos e formas numa sinfonia de corpos que transparecem na dramática encenação, oferecendo plasticidade, beleza, e muito do imaginário ilhéu. As imagens pintadas revelam, numa narrativa visual, o conteúdo dramático do folguedo enquanto sua teatralidade identifica os elementos estruturais do enredo popular. O Auto da Morte e Ressurreição do Boi relata a tragédia fruto do conflito que é a essência de folguedo, tão presente na condição humana. Apresenta a pantomima das investidas do Boi, sua morte e sua cura, contando com a participação dos personagens Mestre Mateus, o Vaqueiro, o Doutor, o Urubu e a Benzedeira, culminando com sua ressurreição. Em alegres movimentos de júbilo pelo renascimento, finalmente é laçado e vai-se embora.
Outras figuras entram na trama e funcionam como uma dimensão da expressão teatral: o Cavalinho, a Cabrinha, o Urso Preto, o Jaraguá, a Maricota e a Bernunça. O repertório tradicional da oralidade presente na cantoria, é constituído por versos, quase sempre repentes criados pelo próprio “cantador” ou “puxador” que introduz ou encerra a participação de cada personagem. A cantoria imprime a vibração do folguedo e o seu ritmo contagiante envolve a platéia impulsionando a alegre coreografia da tradicional brincadeira. Há em cada um dos quadros, num primeiro plano, o movimento da dança e seus elementos figurais, representados pelo Boi, Bernunça, Maricota, Cavalinho, Vaqueiro, Urso, Urubu e Benzedeira que sobressaem sem, contudo, desvanecer a paisagem, palco deste realismo fantástico. O resultado é uma comunhão plástica surpreendente. Dessa maneira, Semy cria as figuras numa elaborada paisagem. O pintor-poeta dá-nos a Bernunça, com sua enorme boca a engolir a noite; o Boi-de Mamão, o Vaqueiro voador a laçar as estrelas do céu da Lagoa ou seria o sonho? A Maricota, vistosa figura de seios fartos, boca vermelha como uma pitanga, olhos negros, braços imensos, a provocar e encantar a todos com o movimento sensual do seu balançar. Sintonia plena entre a dança do folguedo e a dança das cores, pinceladas de tons e contrastes.
Palco do Auto da Morte e Ressurreição do Boi, a paisagem da Ilha, exprime quietude como se o Vento Sul tivesse passado de roldão e varrido para trás todas as tristezas e nostalgias do Mundo. Ao fundo, a Lagoa da Conceição espelha o movimento ondulado e lânguido de suas águas tocadas pelo vento como a doce carícia do amado.
A Poética do Boi na Ilha de Santa Catarina , revela arquivos da memória do pintor que nos brinda com estas figuras míticas, com autoridade de quem nasceu e se criou nesta Ilha de Santa Catarina.
* Texto: Prefácio da obra:Poética do Boi na Ilha de Santa Catarina do poeta Semy Braga, no prelo, saída em 2009
** Imagens: Coleção Poética do Boi, obras de Semy Braga. Técnica pictórica: tinta acrílica sobre tela/eucatex. Fotos de Antônio Fasanaro.