Postal para Ponta Delgada nos 470 anos!
Menina do meu viver!
Nem princesa, nem pérola, nem mui, nem sempre isto ou aquilo! Simplesmente cidade! Simplesmente, a minha cidade. Invernos de beirais chorosos e Verões de mar infinito, beijo tranquilo que morre no sussurro da noite que cai morna de avenidas e quente de saudades! Ponta Delgada! Não me foi berço mas é leito onde mergulho os anos e as ilusões, de Santa Clara à Pranchinha, do mar à serra, até aos Arrifes e Relva ou às Fajãs floridas e matizadas do branco que produz e dos laranjais que já foram!
No meu coração uma cidade. Na minha cidade, um coração que pulsa em cada viver, séculos passados e presente feito esperança difícil, parto quotidiano de futuro melhor! Hoje Ponta Delgada faz anos! 470! Mesmo com o véu de nuvens, há um Sol que aparecerá e regará de luz as ruas e esquinas, os cantos dos meus afectos e dos meus sabores! Porque Ponta Delgada come-se como fruto maduro de tempo e lugar que mata esta fome de regresso que multiplica o tamanho das horas das ausências!
Tivesse eu voz, tivesse eu talento e com certeza poderia cantar a gesta de um povo que te fez cidade, de teu nome “por estar situada junto de uma ponta de pedra de biscouto, delgada e não grossa como outras da ilha, quasi raza com o mar” (Frutuoso) , na terra onde o trabalhador “levanta a enxada mais alto, a crava mais fundo e com mais vigor lhe extrai a terra já dócil ao grão e já penetrável ao tubérculo” (Nemésio). No comércio e na indústria foste pioneira e sentinela, dos tempos do pastel, fartura de verde espalhada na ilha à aventura das exportações e dos arrojados Homens de então que te vestiram de exotismo em jardins e culturas, com desenvolvimentos nunca antes sonhados.
Nas tuas águas singraram caravelas, veleiros, vapores, paquetes e barcos de pesca. Gente de têmpera rija e coragem indomável fez do teu porto oitocentista um verdadeiro centro Atlântico onde ancoraram barcos e amararam aviões no início da saga dos ares.
Depois de tudo isto, mais que louvar, mais que engrandecer, hoje apetece perguntar: Que fizeram de ti, ó cidade? Quem te desventrou as entranhas da centralidade para criar periferias que te esvaziam e deformam? Quem te tornou agonizante no teu centro autorizando catedrais de consumo e torres de habitação? Quem te roubou serviços e os deslocou ao sabor de interesses, sabendo que perdias o bulício de cada dia? Quem te matou a noite? Quem gerou cidades dentro da cidade, Portas do Mar, delírio de fantasias, e casinos e galerias inacabadas que apodrecem de tempo e de vergonha?
O teu rosto, ó cidade, não precisa de ser embonecado e falsificado. Enganem-se os que pensam que mais valem toneladas de betão que um velho museu aberto. E o teu, Ponta Delgada, o teu Museu vai a caminho de dez anos fechado. Há vazios que parecem não doer, mas desgastam e fazem sofrer quem verdadeiramente te ama e não gosta das velhas tricas políticas que de ti fazem jóia de coroa apenas apetecível na sede do poder e no esquecimento do servir.
Ponta Delgada de Santos (Pedro, Sebastião, José e Clara) e do Santo dos Santos, o Cristo dos Milagres que desde 1541 se alberga no coro baixo do Mosteiro da Esperança; Ponta Delgada das Letras, âncora de Antero, e das artes com Canto da Maia, Domingos Rebelo e tantos outros.
Esta é a Ponta Delgada que eu amo, que sinto e vivo em cada dia. Mesmo que eu nela não ande como queria, ela anda em mim ao sabor dos meus desejos e saudades.
Parabéns, Ponta Delgada e que não te pesem os séculos, menina do meu viver!
Santos Narciso
Foto: Correio dos Açores
(*) O Autor é natural da Ilha de São Miguel. Jornalista. Director-adjunto do Correio dos Açores.
Texto reproduzido com sua autorização.