PRÁ VIVER OU MORRER
e só de manhãzinha os corpos despediam-se”.
Adélia Prado
quero sentir tua língua em meu dorso nú
suga-me os seios lambe-me o ventre
extrai desse corpo o mel doce lenta tenazmente
arrepia-me os pelos como um vendaval e outros ventos
que transformam em vagalhões tranqüilas e suaves ondas
e igual ao movimento dessas águas
invada-me o mais profundo que puderes
molha-me o sexo com teu gozo pois somente assim
poderás me incendiar e dessa forma feito chama
serei o turbilhão a te envolver e consumir
pois entenda, tenho urgência de viver tanto prazer
nem que seja prá morrer!
QUANDO ME BEIJAR
“Não sei pra que te beijar se o teu beijo não me sabe salvar”.
Chandal
O dia em que me beijar poderia vir de surpresa dentro de um shopping em frente a uma loja qualquer com pessoas ocupadas transitando pelo seu cotidiano mas que suas mãos estivessem firmes ao segurar meu rosto e que tuas coxas me cercassem o corpo em compressão suficiente para me reter
O dia em que me beijar poderia ser na esquina de uma fábrica daquelas ruas cinzentas cobertas de asfalto sinais de trânsito desordenados com trabalhadores inquietos e determinados mas que teu beijo tivesse ali a ardência da malagueta e teu abraço a me enlear a cintura o constranger do laço como se única no mundo eu fosse
O dia em que me beijar poderia ser num cinema numa seção pré-marcada de filme noir de pessoas indiretas que olham altivas além de você e buscam o indefinível no horizonte limitado por cartazes de 20 e o teu beijo seria doce lento marcado pelas lambidas de nossas línguas úmidas quentes e ausentes da tela em movimento
O dia em que me beijar poderia ser em um não lugar carente de referências ou na necessidade delas fosse o teu olhar em busca do meu uma captura uma sedução consentida onde nossas bocas se encontrariam sem enlaces pelo simples prazer de fechar os olhos e sentir o escorregar da saliva de um no outro com sabor de anis
O dia em que me beijar poderia ser no chão, cama ou tatami endereço secular do encontro de almas sexo intimidades onde o teu meu beijo se transformaria no beijo de nossos corpos colados ávidos de sorver o sumo até o alvorecer saciados
O dia em que me beijar poderia ser em minha tumba antes que o coveiro cerre a lápide da cova eterna e mesmo calada e gélida ainda assim sentiria o cheiro e o calor de tua face temerosa a me roçar quando no gesto derradeiro depositares a única rosa vermelha no meu peito de pós-vida
Do livro Poemas Infames (sentimentos e algumas impropriedades). Ed. Insular, 2002.
Dento de mim
mora uma ave
cujo voo de liberdade
tolhi por um sentimento qualquer
por vaidade
para ter uma ave dentro de mim.
Longos anos se passaram
e esta dentro de mim
sobrevive em simbiose
com meu sangue minha essência
calada prisioneira
sem voos nem cantos
apenas uma ave
dentro de mim.
Agora já bem tarde percebo
que uma ave enterrou suas garras
em mim para morrer
e como dói essa ferida
de uma ave encarcerada
cujo voo de liberdade tolhi
para carregar este orgulho
de ter uma ave
dentro de mim.
Hoje lágrimas derramo inutilmente
por esta ave que perdi
suas asas inúteis apodrecem
dentro de mim.
Do livro Sem Rimas e Sem Razão. Ed. Paralelo 27,1991.