Prefácio a Pessoa, Portugal e o Futuro, de Onésimo Almeida,
por George Monteiro trad. Leonor Simas-Almeida
Quando em 1987 surgiu o precursor deste excelente Pessoa, Portugal e o Futuro, então com o título de Mensagem: uma tentativa de reinterpretação, eu recenseei‑o para a revista World Literature Today. Cada vez mais convencido de que é «correcta» a interpretação pioneira desenvolvida nesse primeiro livro, gostaria de expressar o meu elevado apreço pelo bem conseguido trabalho do autor, reproduzindo aqui a mencionada recensão crítica:
O autor de Mensagem que emerge do minuciosamente investigado e intensamente argumentado estudo de Onésimo Teotónio Almeida sobre as intenções poéticas e o literário desígnio (insisto no termo) revela‑se claramente como um teórico da acção social e da intervenção política. O patriotismo de Fernando Pessoa veste a pesada armadura da coerência estrutural e do pragmatismo lógico conseguida por um pensador, ao mesmo tempo frio e fervente perante a mensagem que teria desejado trazer aos que mereciam executá‑la, uma mensagem brilhantemente exemplificada no próprio acto de ter ele apresentado o seu poema à consideração de uma homenagem pública.
Um subtexto do ensaio notavelmente lúcido e coerente de O. Almeida, se tivermos em conta a diversidade de comentários e interpretações evocados por um texto inequivocamente vital, é claramente a noção de que a grande mensagem bem reflectida e expressiva do poeta‑pensador aos seus compatriotas tem sido lida como quase tudo o que o poeta não quis que fosse, desde o quimérico desejo de um futuro imperial construído nas areias movediças da nostalgia até ao modelo cifrado do desejo de qualquer poeta de escrever sobre si próprio no mais hermético dos códigos: a linguagem ocultista do eremita romântico. Não deveria surpreender‑nos (mas surpreende‑nos) aprender, como aprendemos, no importante estudo de O. Almeida que em Mensagem não apenas o poeta sabia o que pretendia, mas ainda que a sua mensagem é tão directa e, de certa maneira, tão prática que é quase como se tivesse sido necessário um acto colectivo de perversidade para que fosse tão egregiamente mal entendida durante mais de cinquenta anos.
Baseado na descoberta do autor do enraizamento do poema no entendimento de Pessoa dos escritos de Georges Sorel, o caso é tão claramente arguido e tão convincentemente documentado que, a partir de agora, visto precisamente pelo que é, Mensagem emerge como referência para todo e qualquer estudo sobre a mente e o pensamento de Fernando Pessoa.[1]
À supracitada recensão crítica original de há um quarto de século, podem acrescentar‑se algumas palavras referentes a detalhes pertinentes para o desenvolvimento de Mensagem, que vieram à superfície após a publicação do livro de Onésimo, nomeadamente factos que iluminam os exactos desejos de Pessoa relativos ao efeito que ele pretendeu para o seu poema e para o uso que dele fosse feito; tudo isso previsto no título pró‑activo que foi a sua escolha final.
A intenção de Pessoa de intitular Portugal um dos seus projectados livros data já dos finais da primeira década do século xx. Precisamente antes de um tal livro ser publicado, todavia, Pessoa foi induzido a substituir o título de Portugal por Mensagem. Avisado, diz‑se, de que o seu título original para uma colectânea de poemas históricos, elegíacos e de profético lirismo, que ele ia submeter como poema único à competição recém‑criada pelo Secretariado de Propaganda Nacional, se tornara nos últimos tempos algo gasto, ele decidiu‑se por Mensagem, um título aparentemente mais pró‑activo. Curiosamente, esse título parece‑me ter‑lhe sido sugerido, anos antes, por um inglês das suas relações residente em Lisboa. Ainda ambicionando uma carreira de poeta de língua inglesa, em 1918 Pessoa remetera cópias de dois pequenos volumes, 35 Sonnets e Antinous, a William A. Bentley, o editor em Lisboa de Portugal, um compêndio mensal de notícias de política e artes, dirigido a um público inglês, principalmente de Londres e de outras partes da Grã‑Bretanha.
Algo repugnado pelo conteúdo que considerava pouco saudável e perturbador de Antinous, Bentley ofereceu ao aspirante jovem poeta alguns avunculares conselhos e indicações sobre a direcção para onde ele deveria futuramente encaminhar o seu talento poético.
Permita‑me que lhe sugira embrenhar‑se na sua própria História; nas mais puras fontes da sua existência nacional; na fé, entusiasmo e devoção daqueles que fizeram de Portugal a primeira nação no despertar da Europa da Renascença, escolha algum tópico que seja ao menos saudável, exaltante e puro e devote‑lhe a sua poesia. Isto se tiver a coragem de sentir a vocação de cantar não apenas o passado distante; mas que tenha uma mensagem para o Presente. Nisso Camões parece‑me tão mais ousado do que o conjunto de poetas que se envolveram com ele na história dos tempos antigos, ele intrepidamente escolheu para assunto dos seus grandes poemas as coisas, os homens e os eventos do seu próprio tempo e as viagens e descobertas dos seus companheiros quotidianos. Não haverá nada de nobre a merecer o seu encómio e a sua inspiração? Se não houver, por que não apontar aos seus contemporâneos o que poderia sê‑lo e o que seria digno do esforço deles? [2]
Não temos a resposta de Pessoa (se de facto houve alguma) a esta bem intencionada missiva de aconselhamento da parte do fundador e editor de Portugal, uma publicação mensal, sita em Lisboa, sobre «o país, as suas colónias, comércio, história, literatura e artes» (1915‑1916), embora a substância da carta de Bentley tenha, creio eu, ficado com Pessoa até ao fim da vida, resultando, cerca de quinze anos mais tarde, na formulação e designação de Mensagem. Em Pessoa, a memória dessa carta de Bentley, atrevo‑me a propor, bem poderá ter sustentado a intenção final do seu livro, assim como sugerido a alteração do título.
A natureza da mensagem a ser transmitida em Mensagem, o modo de animar e dirigir o espírito colectivo português para a acção foram, porém, criação do próprio Pessoa. Que o ponto da «mensagem» de Pessoa tencionava ser um apelo sacerdotal à acção, tal como eu o vejo, é o tema fundamental da indispensável leitura de Onésimo Teotónio Almeida, revelando a inspirada apropriação por Pessoa da obra de Blaise Pascal e de Georges Sorel; particularmente no que concerne à sua partilha da concepção de uma teoria pragmática da verdade e bem assim ao seu singular conceito de mito como guia para a acção.
George Monteiro
Windham, Connecticut, U.S.A.
8 de Fevereiro de 2011
NOTAS
1 World Literature Today, vol. 61 (Outono de 1987), p. 613.
2 Ver o texto original desta carta, em inglês, em Fernando Pessoa, Correspondência Inédita (Lisboa: Livros Horizontes, 1996), p. 208. Cota da Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio 3 (F. Pessoa): 1151‑19.
Posted by Carlos Fiolhais at 21:05 Quando em 1987 surgiu o precursor deste excelente Pessoa, Portugal e o Futuro, então com o título de Mensagem: uma tentativa de reinterpretação, eu recenseei‑o para a revista World Literature Today. Cada vez mais convencido de que é «correcta» a interpretação pioneira desenvolvida nesse primeiro livro, gostaria de expressar o meu elevado apreço pelo bem conseguido trabalho do autor, reproduzindo aqui a mencionada recensão crítica:
O autor de Mensagem que emerge do minuciosamente investigado e intensamente argumentado estudo de Onésimo Teotónio Almeida sobre as intenções poéticas e o literário desígnio (insisto no termo) revela‑se claramente como um teórico da acção social e da intervenção política. O patriotismo de Fernando Pessoa v
este a pesada armadura da coerência estrutural e do pragmatismo lógico conseguida por um pensador, ao mesmo tempo frio e fervente perante a mensagem que teria desejado trazer aos que mereciam executá‑la, uma mensagem brilhantemente exemplificada no próprio acto de ter ele apresentado o seu poema à consideração de uma homenagem pública.
Um subtexto do ensaio notavelmente lúcido e coerente de O. Almeida, se tivermos em conta a diversidade de comentários e interpretações evocados por um texto inequivocamente vital, é claramente a noção de que a grande mensagem bem reflectida e expressiva do poeta‑pensador aos seus compatriotas tem sido lida como quase tudo o que o poeta não quis que fosse, desde o quimérico desejo de um futuro imperial construído nas areias movediças da nostalgia até ao modelo cifrado do desejo de qualquer poeta de escrever sobre si próprio no mais hermético dos códigos: a linguagem ocultista do eremita romântico. Não deveria surpreender‑nos (mas surpreende‑nos) aprender, como aprendemos, no importante estudo de O. Almeida que em Mensagem não apenas o poeta sabia o que pretendia, mas ainda que a sua mensagem é tão directa e, de certa maneira, tão prática que é quase como se tivesse sido necessário um acto colectivo de perversidade para que fosse tão egregiamente mal entendida durante mais de cinquenta anos.
Baseado na descoberta do autor do enraizamento do poema no entendimento de Pessoa dos escritos de Georges Sorel, o caso é tão claramente arguido e tão convincentemente documentado que, a partir de agora, visto precisamente pelo que é, Mensagem emerge como referência para todo e qualquer estudo sobre a mente e o pensamento de Fernando Pessoa.[1]
À supracitada recensão crítica original de há um quarto de século, podem acrescentar‑se algumas palavras referentes a detalhes pertinentes para o desenvolvimento de Mensagem, que vieram à superfície após a publicação do livro de Onésimo, nomeadamente factos que iluminam os exactos desejos de Pessoa relativos ao efeito que ele pretendeu para o seu poema e para o uso que dele fosse feito; tudo isso previsto no título pró‑activo que foi a sua escolha final.
A intenção de Pessoa de intitular Portugal um dos seus projectados livros data já dos finais da primeira década do século xx. Precisamente antes de um tal livro ser publicado, todavia, Pessoa foi induzido a substituir o título de Portugal por Mensagem. Avisado, diz‑se, de que o seu título original para uma colectânea de poemas históricos, elegíacos e de profético lirismo, que ele ia submeter como poema único à competição recém‑criada pelo Secretariado de Propaganda Nacional, se tornara nos últimos tempos algo gasto, ele decidiu‑se por Mensagem, um título aparentemente mais pró‑activo. Curiosamente, esse título parece‑me ter‑lhe sido sugerido, anos antes, por um inglês das suas relações residente em Lisboa. Ainda ambicionando uma carreira de poeta de língua inglesa, em 1918 Pessoa remetera cópias de dois pequenos volumes, 35 Sonnets e Antinous, a William A. Bentley, o editor em Lisboa de Portugal, um compêndio mensal de notícias de política e artes, dirigido a um público inglês, principalmente de Londres e de outras partes da Grã‑Bretanha.
Algo repugnado pelo conteúdo que considerava pouco saudável e perturbador de Antinous, Bentley ofereceu ao aspirante jovem poeta alguns avunculares conselhos e indicações sobre a direcção para onde ele deveria futuramente encaminhar o seu talento poético.
Permita‑me que lhe sugira embrenhar‑se na sua própria História; nas mais puras fontes da sua existência nacional; na fé, entusiasmo e devoção daqueles que fizeram de Portugal a primeira nação no despertar da Europa da Renascença, escolha algum tópico que seja ao menos saudável, exaltante e puro e devote‑lhe a sua poesia. Isto se tiver a coragem de sentir a vocação de cantar não apenas o passado distante; mas que tenha uma mensagem para o Presente. Nisso Camões parece‑me tão mais ousado do que o conjunto de poetas que se envolveram com ele na história dos tempos antigos, ele intrepidamente escolheu para assunto dos seus grandes poemas as coisas, os homens e os eventos do seu próprio tempo e as viagens e descobertas dos seus companheiros quotidianos. Não haverá nada de nobre a merecer o seu encómio e a sua inspiração? Se não houver, por que não apontar aos seus contemporâneos o que poderia sê‑lo e o que seria digno do esforço deles? [2]
Não temos a resposta de Pessoa (se de facto houve alguma) a esta bem intencionada missiva de aconselhamento da parte do fundador e editor de Portugal, uma publicação mensal, sita em Lisboa, sobre «o país, as suas colónias, comércio, história, literatura e artes» (1915‑1916), embora a substância da carta de Bentley tenha, creio eu, ficado com Pessoa até ao fim da vida, resultando, cerca de quinze anos mais tarde, na formulação e designação de Mensagem. Em Pessoa, a memória dessa carta de Bentley, atrevo‑me a propor, bem poderá ter sustentado a intenção final do seu livro, assim como sugerido a alteração do título.
A natureza da mensagem a ser transmitida em Mensagem, o modo de animar e dirigir o espírito colectivo português para a acção foram, porém, criação do próprio Pessoa. Que o ponto da «mensagem» de Pessoa tencionava ser um apelo sacerdotal à acção, tal como eu o vejo, é o tema fundamental da indispensável leitura de Onésimo Teotónio Almeida, revelando a inspirada apropriação por Pessoa da obra de Blaise Pascal e de Georges Sorel; particularmente no que concerne à sua partilha da concepção de uma teoria pragmática da verdade e bem assim ao seu singular conceito de mito como guia para a acção.
George Monteiro
Windham, Connecticut, U.S.A.
8 de Fevereiro de 2011
NOTAS
1 World Literature Today, vol. 61 (Outono de 1987), p. 613.
2 Ver o texto original desta carta, em inglês, em Fernando Pessoa, Correspondência Inédita (Lisboa: Livros Horizontes, 1996), p. 208. Cota da Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio 3 (F. Pessoa): 1151‑19.
3. Tradução da Professora Doutora Leonor Simas-Almeida, Senior Lecturer, Brown University.
4. Sobre George Monteiro – Is Professor Emeritus of English and Portuguese and Brazilian Studies, Brown University, and he continues as Adjunct Professor of Portuguese Studies at the same university. He served as Fulbright lecturer in American Literature in Brazil–Sao Paulo and Bahia–Ecuador and Argentina; and as Visiting Professor in UFMG in Belo Horizonte. In 2007 he served as Helio and Amelia Pedroso / Luso-American Foundation Professor of Portuguese, University of Massachusetts Dartmouth. Among his recent books are Stephen Crane’s Blue Badge of Courage, Fernando Pessoa and Nineteenth-Century Anglo-American Literature, The Presence of Pessoa, The Presence of Camões, and Conversations with Elizabeth Bishop and Critical Essays on Ernest Hemingway’s A Farewell to Arms. Among his translations are Iberian Poems by Miguel Torga, A Man Smiles at Death with Half a Face by José Rodrigues Miguéis, Self-Analysis and Thirty Other Poems by Fernando Pessoa, and In Crete, with the Minotaur, and Other Poems by Jorge de Sena. He has also published two collections of poems, The Coffee Exchange and Double Weaver’s Knot.