Um livro pode valer a pena por um momento, uma cena, uma personagem. Francisco Cota Fagundes tem muitas outras páginas inesquecíveis. Mas, ainda que algum dia o tempo mas limpe dos registos da memória, de certeza absoluta que esta não se apagará nunca.
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A vida não existe. Não há nenhum ente que seja a vida. Como uma árvore, uma lagoa ou um castor, por exemplo. Mas nós queixamo-nos dela, como se ela fosse um copeiro que com frequência nos servisse mau vinho. E Francisco Cota Fagundes bebeu vinagre, muitas vezes. Não nasceu fadado para viver facilmente. Não é castigo nem maldição, mas ele teve de ganhar a vida, e ganhar-se a si mesmo, com o suor do seu rosto e os calos das suas mãos.
Talvez muitos fantasiem acerca da filha da lavadeira de Álvaro de Campos, mas nenhum decerto pensará no seu leiteiro. Ou no agricultor que lhe semeou o pão. Gente esquecida, porque não gravou em pedra nem escreveu em livro o seu suor de cada dia. Mas, se não houvesse quem sujasse as mãos na fecundidade da terra, toda a poesia seria inútil e vã a metafísica. Por isso, para alguém que viria a ter o destino do filho do rapaz que vendia lenha, começar como ele começou foi apenas partir na pista errada.
Francisco andou a sua “Route 66”, a “Estrada Mãe” dos deserdados de John Steinbeck, da Agualva à Califórnia. A terra onde jorravam o leite e o fel. Para os pobres, as laranjas tinham um sabor amargo e era como se as herdades de pó existissem ainda e se prolongassem muito para lá dos estados do Midwest. E o pior fel foi-lhe servido por gente que falava a mesma língua e que havia sido tão pobre como ele. Tristemente, quando os pobres enriquecem são, muitas vezes, mais avarentos que os ricos de nascença.
Cansou as mãos, cansou o corpo, cansou os olhos e o cérebro até aos limites do possível. Mais já não seria humano. Subiu sozinho a longa escada que o levou do rés-do-chão da vida até ser um ilustre professor numa das mais prestigiadas universidades americanas. Francisco Cota Fagundes é um dos meus heróis.
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Tornou-se homem de duas pátrias, de duas línguas, de duas culturas. Ele o reconhece: “surgem-me sempre, em irresistível contraponto, o cá e o lá.” Escreve e fala tão facilmente numa como na outra língua, se bem que seja o inglês aquela a que literariamente recorre com mais frequência. Embora nunca saiba, “até ao último momento, em que língua é que se vai escrever o que se escreve.” Mas percebe que há coisas que “só podem ser vertidas numa determinada língua que está em nós.”
O muito repetido “to be or not to be” mostra bem como as línguas por vezes não se equivalem. Em português surge invariavelmente citado como comparação entre dois opostos “existentes”, como, por exemplo, “ser ou não ser bom escritor”. Perdendo, portanto, o seu verdadeiro sentido, porque não estamos habituados a conceder àquele verbo o significado de “existir”.
Num momento de aflição ou desespero o mais comum será invocar Deus ou o Diabo na língua que se aprendeu com a fala. Porque essa é a dos sentimentos íntimos, a da nossa verdade para nós mesmos. Cota Fagundes narrou em inglês a história do pai menino calcorreando as ruas de Angra para vender a lenha que ninguém queria. Mas foi neste livro, de castores e gente, que deixou em português a narrativa, ou viagem ao fundo de si mesmo, que começa com uma pergunta dramática no título: “Como escrever o teu retrato, Pai?” Assim dito, percebe-se a dúvida e a angústia que as palavras carregam. Em inglês talvez essa compreensão não fosse imediata. Mas mais forte, mais pungente, do que dito em português será “Not Born To Be Happy”, o título do livro, escrito em inglês, acerca do filho, e da sua “jornada através da escuridão” (“A Jouney Through Darkness”). Acompanhou-o até às portas da morte para depois sofrer a inquietação constante de o ver sempre às portas da vida. A tradução de “not born to be happy” dificilmente expressaria o mesmo peso, a mesma força, o mesmo e insuportável drama.
No retrato do Pai, que não sabe como escrever, tem a consciência de que, qualquer que sejam as tintas/palavras que use, não estará fazendo mais que o seu próprio auto-retrato, ou o auto-retrato da sua própria alma. Com que cores, com que dores, pintar esse Pai que mandava para o Porto Judeu o filho mais velho vender lenha, tal como fora também ele mandado tantas vezes para ali e para Angra do Heroísmo? E pelos mesmos caminhos ermos, “frios e ventosos”. No retrato que dele fizer ficará exposta, pois, a sua alma. E um homem é a alma; o corpo, a sua circunstância. Deverá perdoar-lhe, em nome do irmão e do seu próprio? Deverá amar a sua memória, porque ser filho a isso obriga? E será que pode amar-se por obrigação somente?
Francisco Fagundes fala destes sentimentos na língua da sua infância talvez porque nela possa transmiti-los com mais rigor. Mas detém-se. O retrato fica incompleto. Em inglês, teria acabado a pintura, provavelmente. Porque esta língua poderia funcionar um pouco como o claro-escuro nas telas de Rembrandt ou Zurbarán: atenuaria os contornos que dispensam a nitidez.
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Mas “A Lagoa dos Castores” e Outras Narrativas da Minha Diáspora não é um livro de lamentações. É um mosaico policromo de pessoas e de histórias. Gente das ilhas dissolvida na América imensa. Gente da América imensa que, afinal, é tão humana como os camponeses da Agualva. O título define de imediato o espaço e induz a imaginação a viajar por uma terra de mistérios antigos e sempre novos. De sonhos prometidos e de promessas adiadas. A narrativa que abre o livro, uma divertida história de pessoas e bichos, é como que uma parábola sobre a vida moderna, que só pode salvar a Terra se deixar que a natureza se cumpra. De certo modo os castores, que regressam a um lugar que fora ocupado pelos seus antepassados, vêm firmar a paz entre o Homem e essa natureza no fio da navalha. E, de certo modo também, a sua presença humaniza o lugar.
Incluindo-se na “Diáspora”, Francisco Cota Fagundes implicitamente se confessa um não convertido totalmente ao Novo Mundo. Como um judeu entre os gregos. Se na América encontrou a sua Antioquia, é na ilha que permanece a sua Jerusalém. A ilha, que continua a ser, ainda que inconscientemente, a medida de todas as coisas. Para um emigrante, mesmo ao fim de várias décadas, será sempre inevitável a comparação entre o que é, por ter deixado a pátria, e o que seria, se não tivesse zarpado. Mas a pátria tem dificuldade em entender que os emigrados, ainda que continuem a ser nossos compatriotas de afecto e de língua, são quase sempre portugueses que cresceram muito. Por isso os apoios às comunidades de emigrantes não passam, com frequência, de oferecer o inútil a quem já tem o supérfluo. No meio do humor da narrativa O Ensino do Português à Porrada, Cota Fagundes conta um episódio que ilustra esse tacanho provincianismo. Maria Deolinda, mulher do autor, pediu material de apoio para as suas aulas de Português. E, como resposta, recebeu da pátria mãe da Língua trinta grossos volumes de uma História da Literatura Portuguesa e umas “bandeirinhas de Portugal”…
A Europa costuma invejar o progresso tecnológico americano. Mas, para se vingar, normalmente despreza, como inferior, a sua cultura. Ainda que os europeus só tenham sido mais cultos que os americanos antes de grande parte da Europa se haver mudado para a América. De vez em quando, a cultura tira então o barrete do folclore e vai exibir-se em traje de cerimónia para emigrante ver e ouvir. O resultado pode ser a triste figura que fizeram três das mais ilustres personagens da nossa literatura. Não ensinaram nada a ninguém. E, fechadas nos seus palácios de cristal, perderam uma oportunidade de aprender. Ve
m contado em A Primeira Viagem a Washington. E dá pena.
Francisco Cota Fagundes, que conhece bem a amargura de receber um merecido salário pago como quem dá uma esmola, sofre com os seus compatriotas que se dispõem a tudo para ganhar muito menos do que o valor que a vida tem. Na narrativa Asbesto: “A gente cá faz o que for preciso!”, fica o retrato dessa pobre gente que, desconhecendo os riscos da exposição ao pó do amianto, trabalha na remoção de asbestos para tornar saudáveis os espaços onde arrisca a sanidade dos seus próprios pulmões. Gente que “faz o que for preciso” porque precisa seja do que for que a livre da pobreza levada da pobre pátria. Por isso os pobres desejavam e amavam a América acima de todas as coisas. Mas os emigrantes eram por vezes vistos com algum desprezo pelas camadas superiores da sociedade. Uma sociedade que Francisco Cota Fagundes descreve com uma subtil e amarga ironia em Hard Knocks: “O casamento de raparigas de boas famílias era ferozmente regulado por todos os seus parentes. Boas famílias eram aquelas que fossem consideradas ricas; boas famílias remediadas eram as que possuíam alguns alqueires de terra (e uma simples meia dúzia de alqueires excluía mesmo qualquer pretendente que em outras circunstâncias seria aceitável); os que não eram de boas famílias – e eu estava nesta categoria – eram aqueles que possuíam muito pouco ou nada. Além disso, não podiam reclamar uma sólida respeitabilidade social e moral.” (Aos pobres nem sequer era concedido o direito à honra e ao bom nome …) No entanto, e percebendo-se ainda a mesma amarga ironia, em outra passagem daquele fascinante livro de memórias diz: “Desde que se soube que íamos para a América, o nosso estatuto social aumentou consideravelmente.”
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Entre o drama e o burlesco, por vezes com uma efabulação cheia de humor, “A Lagoa dos Castores” e Outras Narrativas da Minha Diáspora contém, nas suas três dezenas de histórias, a vida tal como ela é. As tristezas e as alegrias, os sonhos e as desilusões, a comédia e o drama. Um daqueles livros que podem ajudar a libertar a literatura de Língua Portuguesa dos extremos entre os quais normalmente vacila. Nos píncaros da fama da excelência, haverá uma meia dúzia de autores que escrevem para serem entendidos por um diminuto escol cultural. No outro extremo, os livros “fáceis”, simples objectos comerciais, de amores e rancores previsíveis como as nuvens no Inverno. É difícil escrever com a virtude do meio-termo, em que a forma ou o estilo satisfaçam os mais exigentes sem deixarem de ser percebidos pelos menos cultos. Francisco Cota Fagundes consegue-o. Com elegância e naturalidade. E faz-nos falta a tradução dessa sua obra ímpar que é Hard Knocks: An Azorean-American Odyssey.
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O livro termina com uma espécie de post scriptum. Um caso (ou acaso) raro, pois trata da história das vicissitudes de uma das cópias do original. Seria difícil inventar uma situação em que a falta de senso fosse tão evidente como neste caso rigorosamente autêntico. Que incluiu um absurdo debate histórico-geográfico de Francisco Fagundes com um funcionário americano da FedEx e um diálogo surrealista, entre os Açores e a alfândega do aeroporto Sá Carneiro. Nesta conversa foi proposto ao interlocutor micaelense que, para uma espécie de auto-de-fé alfandegário, ele, ou o seu amigo da América, pagasse, por um preço aduaneiro exorbitante, a lenha para a fogueira. E, se a Europa não ficou resgatada na sua suposta cultura superior, ao menos um empate técnico em insensatez e ignorância entre algumas das personagens americanas e portuguesas talvez possa servir-nos de moderada consolação.
Maia, a de São Miguel, Março de 2010
Sobre o autor:
Francisco Cota Fagundes doutorou-se em Línguas e Literaturas Hispânicas pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (1976) e desde então lecciona na Universidade de Massachusetts Amherst. Lecciona língua e literatura portuguesa e língua e literatura espanhola a nível de graduação; e todas as áreas de literaturas lusófonas a nível de pós-graduação. Entre os livros da sua autoria e volumes organizados, co-organizados, traduzidos e co-traduzidos contam-se Narrativas em metamorfose: abordagens interdisciplinares (2009) com Irene Maria F. Blayer; Oral and Written Narratives and Cultural Identity: Interdisciplinary Approaches (2007) com Irene Maria F. Blayer; Tudo Isto que Rodeia Jorge de Sena: An International Colloquium (2003); Desta e da Outra Margem do Atlântico: Estudos de Literatura Açoriana e da Diáspora (2003); “Para emergir nascemos”: Estudos em Rememoração de Jorge de Sena (2000); Hard Knocks: An Azorean-American Odyssey (Memoir) (2000); Ecos de uma Viagem: Em Honra de Eduardo Mayone Dias ( 1999); Metaformoses do Amor: Estudos sobre a Ficção Breve de Jorge de Sena (1999); The Baron (1996; trad. de O Barão, de Branquinho da Fonseca); Stormy Isles: An Azorean Tale (1994; trad. de Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio); Metamorphoses (1991; trad. de Metamorfoses, de Jorge de Sena); A Poet’s Way with Music: Humanism in Jorge de Sena’s Poetry (1988). Também editou cerca de 60 ensaios em revistas especializadas. Já apresentou mais de 100 trabalhos e conferências em fóruns nacionais e internacionais.