Prefácio
Era uma vez…
… e de repente Fernando Aires deixou-nos. Assim sem mais. Na Avenida Príncipe do Mónaco 22 ecoou um vazio, por mais que as visitas tentem conversar com a família como se. Quem fala de pesos pesados ignora a responsabilidade de um peso pesado em maiúsculas como o Fernando na sua família.
Sentados nesta mesa de pedra por ele trazida de um extinto moinho qualquer algures na ilha, e à volta da qual abancámos com ele vezes sem conta em serena cavaqueira tarde e noites dentro, agora só imaginariamente podemos continuar a conversar. Resta-nos abrir o diário e relê-lo. O exímio poeta-pintor, que ele era, retratou a intimidade destes lugares com mestria, porque não se fixava na exterioridade fenoménica e pictórica, porque tinha conseguido penetrar nos sons, nos cheiros e no tempo destas árvores, destes muros, deste cenário outrora repleto de vinhedos e hoje, por progressos e ditames europeus, já sem eles. Carregado de tempo remoto, de verões longínquos, de rostos que desapareceram mas cujas vozes ecoavam na sua mente, as mesmas que hoje podemos ainda ouvir nas páginas que o diário e os contos gravaram para sempre. O Fernando é o grande ausente presente em toda esta “casa do mirante”, sonho dele e da Linda e por ambos mandada erguer, como está dito num soneto da própria Linda, gravado em azulejo à entrada da porta, a poder ler-se mesmo daqui da mesa de pedra:
Para ver a vinha e olhar o mar
Quanta vez subimos ao velho mirante
E um sonho surgiu, tornou-se constante:
Construir um ninho para ali morar.
O sonho cresceu e a casa ergueu-se
Feita de madeira, bem leve, no ar
Entre céu e terra, entre fogo e mar,
Bem perto das nuvens, bem perto de Deus.
Passaram-se verões, infância dos filhos
Risos e folias, serões com amigos
Havendo em Setembro um aniversário
“Era uma vez o tempo”. Quem diria
Que a casa da Galera passaria
A ser tema central do teu diário.
Em torno desta mesma mesa, a família já se reencontrou toda, envolta na lembrança dele, desde a Linda à netalhada – também linda – que o embevecia e o mantinha preso à vida fazendo-o sentir-se continuado. Todos quiseram assinar o ponto neste volume com um texto pessoal de evocação, ao marido, ao pai, ao avô. Só a bisneta, a Inês, que nasceu no último ano de vida do Fernando e lhe trouxe uma alegria tão inesperada quanto profunda, só ela não pôde escrever, mas nas semanas a seguir ao falecimento do bisavô ainda lhe reclamava a presença, apontando para um retrato seu como a perguntar onde estava.
O pedido de colaboração ao núcleo mais próximo de amigos e admiradores obteve adesão imediata e incondicional. Os seus testemunhos vêm por ordem alfabética.
Pareceu-nos importante reunir também, em secção à parte, os principais textos críticos surgidos acerca da sua obra, que incidem mormente sobre o diário. Esses foram ordenados cronologicamente segundo a data de publicação. Agradecemos aos autores que nos permitiram a sua reimpressão, associando-se assim a esta homenagem. Alguns, todavia, ofereceram-se para enviar um escrito adicional, expressamente para ser incluído neste volume. Além disso, como sinal de que a obra literária legada pelo Fernando não desapareceu com ele, dois seus leitores recentes (que dele só ouviram falar após o seu desaparecimento do meio de nós) colaboram também aqui. Isso porque, ao manifestarem grande entusiasmo pela leitura do diário, se lhes pediu que registassem as suas impressões sobre o mesmo, o que conseguiram fazer em velocidade supersónica de modo a ainda apanharem o livro antes de seguir para a gráfica.
Foi difícil elaborar uma selecção de fotografias. As que aqui vão incluídas resultam de um consenso entre os organizadores e os familiares. Obviamente todos queríamos incluir um número maior; havia, porém, que obedecer a limites editoriais.
O volume encerra com páginas inéditas do diário que o Fernando Aires apenas reiniciara graças a constantes insistências de amigos. Uma das entradas é emblemática: preanunciava o fim de que nenhum de nós suspeitava mas, parece, (só) ele pressentia.
Esta edição, coordenada por dois amigos e por uma das filhas, é custeada pela esposa, Dra. Idalinda Ruivo, e pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada, de que o Fernando Aires foi membro e, durante muitos anos, parte da Direcção. Agradecemos ao actual Presidente, o Dr. Henrique Bernardo de Oliveira Rodrigues, seu amigo e neste volume também colaborador, o ter aceitado a nossa proposta de edição. A supervisão gráfica da obra deve-se em primeiro lugar ao Dr. João Paulo Constância que, muito dedicada e profissionalmente, se esmerou na feitura deste livro.
A todos quantos para ele contribuíram, desejosos de prolongar a memória de Fernando Aires, o homem e o escritor, aqui fica o nosso muito obrigado.
Maria João Ruivo
Leonor Simas-Almeida
Onésimo Teotónio Almeida
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Imagens: cedidas gentilmente por Maria João Ruivo