Presenças açorianas em Macau: a obra de Rodrigo Leal de Carvalho (I)
Nas páginas das obras de Rodrigo Leal de Carvalho, deparamo-nos com diversos retratos de Macau, delineados através de múltiplas estórias que se entrecruzam com a História, de ficções germinadas e enraizadas na realidade.
Nascido na Praia da Vitória, Terceira, Açores, a 20 de Novembro de 1932, Rodrigo Leal de Carvalho, após uma passagem por S. Tomé e Príncipe, residiu em Macau, com curtas interrupções, durante quase quarenta anos, entre 1959 e 1999.Aí, como magistrado, desempenhou diversas funções, tendo sido Procurador da República, Procurador Geral-Adjunto em Macau, Presidente do Tribunal de Contas e Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
Foi precisamente na diáfana e etérea “Cidade do Santo Nome de Deus, Não Há outra mais Leal” que despontou como escritor, sobretudo romancista.
A sua primeira obra, intitulada Requiem por Irina Ostrakoff, foi publicada em Janeiro de 1993, pela editora Livros do Oriente, tendo sido distinguida com o Prémio IPOR em 1994. Este livro reconstrói ficcionalmente a vida de uma refugiada russa vinda de Xangai para Macau durante a guerra do Pacífico, numa intriga trágica marcada pelo abandono e exploração. Esta heroína é delineada como uma vítima da História, tendo sido afectada pela revolução russa, a Primeira Guerra Mundial, a invasão japonesa da China e a revolução comunista de 1949. Por fim, mergulha nas teias da miséria na Macau dos anos 60. Pouco depois, em 1994, vem a lume Os construtores do Império, cuja acção se desenrola em Macau, Moçambique e Portugal num período de 20 anos após a Segunda Guerra Mundial. Por seu turno, A IV Cruzada (1996) centra-se na estória de dois chineses refugiados (Cheong Cheng Chi e Fong Man Wa), amigos de infância em Xangai, que se estabelecem em Macau e Hong Kong depois da guerra. Nesta sequência revisitamos a Xangai dos anos 40, ocupada pelos japoneses, onde acompanhamos a infância dos dois heróis, cujos destinos, depois de se terem cruzado em Hong Kong, acabam por se reencontrar em Macau para um “ajuste de contas”, visto que ambos seguiram percursos vivenciais antagónicos. Além de ter como temática a traição, a narrativa foca sobretudo o combate levado a cabo pela “Quarta Cruzada” para aniquilar as redes locais de crime organizado.Toda esta trama narrativa é-nos contada por um narrador de 1ª pessoa, advogado recém-chegado a Macau (conotado como o próprio autor), que adopta uma perspectiva de observador “envolvido”, espelhando aspectos biográficos, ao referir, inicialmente: “Eu tinha acabado de chegar, vindo de uma pequena Província Ultramarina, equatorial e verde, de águas azuis e sonolentas” (p. 22-23). Convém recordar que antes de ir para Macau, Rodrigo Leal de Carvalho exerceu funções em S. Tomé e Príncipe.
Não obstante, a obra mais extensa e ousada em termos de diversidade temporal e multiplicidade de espaços é Ao Serviço de sua Majestade (1996). Começa em Macau e acaba na Bermuda, passando pela Grã-Bretanha, África e Estados Unidos. Nela encontramos a estória dos encontros e desencontros de duas vidas (Odette Maria e o cadete Archibald George MacGuire), dois destinos cruzados e afastados pela ironia do destino ou porque o “Serviço a Sua Majestade” assim o determina.
Não podemos ainda deixar de referir outros títulos mais recentes, como é o caso de O Senhor Conde e as Suas Três Mulheres (1999), A Mãe (2000) baseado num acontecimento ocorrido em Macau, no pós-guerra do Pacífico, centra-se na odisseia de Natasha Korbachenko, que devido à revolução bolchevista acaba por se refugiar em Macau; O Romance de Yolanda (2005) tem como ponto de partida o episódio de uma macaense que aceita o casamento ficcional com o milionário filipino Ramon, para que este obtenha a nacionalidade portuguesa e deixe de ter problemas com a polícia. Por último, o seu livro mais recente é As Rosas Brancas de Surrey (2007), também relacionado com Macau.
Autor da diáspora (Actualmente a residir nos Açores) é precisamente, a múltipla condição dos exilados, refugiados e deslocados que habita as suas obras, e cujo porto último de abrigo é Macau, território acerca do qual refere em A IV Cruzada: “Macau encantou-me. Foi um amor à primeira vista e que ainda perdura ao fim de trinta e cinco anos, de alguns percalços de percurso e, pior ainda, das radicais transformações urbanas e sociais que sofreu.” (p.23).
Então, como refere David Brookshaw: “For him then, the identity of Macau is not only predicated on its position as a place of cultural confluence, but also, and perhaps more importantly, on the fact that it is a cosmopolitan city which is a refuge for lost souls, people in continual transit.” (2002, 126).
Assim, embora Macau não seja configurada concretamente como o seu “axis mundi”, ela é o espaço de movimento, território de exílio, habitado pelas diversas diásporas, lugar de encontros e desencontros, ponte entre mundos tão díspares, espelho poliédrico de culturas, gentes e mundos.
Dora Nunes Gago
Bibliografia:
Botas, João,“Portugal continua a ver Macau de olhos fechados”, entrevista de Rodrigo Leal
de Carvalho ao Jornal Tribuna de Macau online, 9 de Outubro de 2009:
http://www.jtm.com.mo/view.asp?dT=328701001
Brookshaw, David Perceptions of China in Modern Portuguese Literature – Border Gates
(Lewiston/Lampeter, Edwin Mellen Press, 2002).
Carvalho, Rodrigo Leal de, A IV Cruzada, Macau, Livros do Oriente, 1996.
_____Ao Serviço de Sua Majestade, Livros do Oriente,
_____O Romance de Yolanda, Livros do Oriente, 2005.
Domingues, Catarina, “os romances do senhor magistrado”, Dez de 2011:
http://www.revistamacau.com/index.php/macau/3604.html,
Lourenço, Maria, “Um luxo em tempo de crise”, Jornal Tribuna de Macau online, 4 de Outubro
de 2012, http://www.jtm.com.mo/view.asp?dT=386902001
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Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, foi investigadora de pós-doutoramento da FCT, na Universidade de Aveiro e Leitora do Instituto Camões na Universidade da República Oriental do Uruguai. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações em Congressos Internacionais em Portugal e no estrangeiro.