Processing the Côrte-Real Collection: A Personal and Intransmissible Experience
by Irene de Amaral
Monday, November 8, 2010 at 1:05am
Acerca do incêndio da reitoria da Universidade dos Açores ocorrido na madrugada de 12 de junho de 1989, o então reitor, Professor Doutor António Machado Pires, afirma o seguinte em “A universidade e a promoção de uma cultura universitária nos Açores,” inserido no II Volume da História dos Açores: Do descobrimento ao século XX, obra publicada em 2008 sob a direção científica de Artur Teodoro de Matos, Avelino de Freitas Menezes e José Guilherme Reis Leite:
“O edifício ficou reduzido a escombros fumegantes em pouco mais de três horas… Lá dentro ficaram perdidos: os livros da cave (alguns da colecção de José Bruno, nomeadamente um volume da conhecida biografia de Antero, com notas para uma reedição…), dados da Reitoria (ofícios, legislação, fotografias, planos, jornais, medalhas, livros, ofertas ao reitor, etc.), a sala Ruy Galvão de Carvalho (oferta do anterianista Ruy Galvão de Carvalho, que já contava mais de setenta anos), a Sala-Biblioteca Visconde de Botelho, um Centro de Estudos Europeus (também com um gabinete próprio), um Centro de Informática (do qual se retirou ainda bastante equipamento). Eram perdas colossais. A Reitoria parecia, de resto, gravissimamente atingida na sua operacionalidade, privada de documentos e também de processos de alunos”. (642)
A verdade é que este caso permaneceu um mistério por resolver ao longo do tempo e, como tal, acabou por ser arquivado. Motivações políticas poderão ter estado na base do incêndio. Aquele primeiro dez de junho celebrado nos Açores trouxera à ilha de S. Miguel o Presidente da República, Dr. Mário Soares, e o então Primeiro Ministro Professor Cavaco Silva, num contexto temporal muito próximo do simbólico 6 de junho.
Por esses dias eu estava a terminar a licenciatura em ensino de Língua e Literatura Portuguesas e Francesas. Daí que a minha despedida de um percurso académico de cinco anos na Universidade dos Açores tenha ficado ligada à memória de uma Reitoria em ruínas, posteriormente reconstruída e reequipada! Mas foi assim nesse ano. Num final de tarde parti na camioneta das quatro para a Povoação. A fotografia da carta de condução tirada no verão de 1989 mostra o rosto de uma jovem cansada e sem norte. Eu terminara a licenciatura num ambiente não muito agradável e não tinha emprego à vista, num tempo em que concluir uma licenciatura em ensino significava colocação imediata em Portugal. No meu caso, o obstáculo residia no facto de ainda não estar resolvido o meu processo de aquisição de nacionalidade portuguesa, não podendo eu assim concorrer a uma vaga no ensino público da região. O certo é que no fim do verão, a minha tia e madrinha pediu ao padre da vila e diretor do externato para eu lecionar Português e Francês nessa escola católica particular e único estabelecimento de ensino com terceiro ciclo no concelho da Povoação. Tive sorte, uma vez que a esposa do juiz recém-chegado ao tribunal local, habilitada com o segundo ou terceiro ano da licenciatura, declinou a proposta do externato a favor da Escola Secundária da Ribeira Grande.
Alguns anos depois, já professora do Quadro da Escola Secundária Antero de Quental, regressei e aceitei presidir ao primeiro conselho diretivo eleito, responsável pela implementação do ensino secundário no estabelecimento de ensino público Escola Maria Isabel do Carmo Medeiros, ex-externato da Povoação.
As razões por que decidi aceitar esse desafio profissional tiveram muito a ver com a consciência do chão da minha Povoação. E o que têm tais motivos a ver com o tema da nossa celebração hoje e aqui? É que o meu compromisso com a comunidade povoacence tem início precisamente no período da falta de perspetivas profissionais logo após a licenciatura. No verão de 1989 eu volto a minha atenção para uma terra onde apenas residia esporadicamente desde 1973. Eu tinha partido da Povoação com 14 anos e só passara a vir a casa alguns fins de semana e durante as férias.
Entretanto, a Câmara Municipal reedita algumas obras sobre o concelho, cuja leitura desperta em mim a vontade de conhecer a biblioteca povoacence, no sentido que Jorge Luis Borges atribui a essa busca do livro compêndio de todos os outros que o homem do livro, neste caso, a mulher do livro!, buscam. Refere o autor argentino em “La biblioteca de Babel” que o método proposto por alguém se pode descrever da seguinte forma: “Para localizar el libro A, consultar previamente un libro B que indique el sitio de A, para localizar el libro B, consulte previamente un libro C, y assi hasta lo infinito… En aventuras de ésas, he prodigado y consumido mis años” (102). No meu caso, recordo dois títulos oferecidos pela autarquia que me motivaram para essa descoberta do chão da Povoação: um pequeno livro de poesia da povoacence Aurora Morais e, sobretudo, A construção naval na Ilha de S. Miguel: Nomeadamente na ribeira da Povoação nos séculos XVI e XVII da autoria de um senhor chamado Miguel de Figueiredo Côrte-Real (que me confessaria nos Estados Unidos não ter a Câmara Municipal pedido autorização ao autor! Para a reedição da obra).
Foi o livro do Sr. Côrte-Real que me ajudou a traduzir a carga dos nomes próprios da toponímia local, até então misteriosa para mim; designações como “madeira nova,” ou “madeira velha.” Por isso encontrar na Casa da Saudade o autor do livro que tanto interesse me despertara um dia foi o despoletar de uma segunda fase do processo de encontro com o livro. Conheci o Sr. Miguel Côrte-Real em 2001 na Biblioteca Casa da Saudade através da Maria José Carvalho, da Dineia Sylvia e da Ana Monteiro. Nesse tempo, o ambiente da biblioteca proporcionava conversas longas, e um certo dia ouvi que ele pensava doar a sua coleção de livros a uma instituição cultural. É assim que ao longo da última década tenho acompanhando à distância essa negociação que o Sr. Côrte-Real estabelecia mais com ele próprio do que com potenciais interessados em receberem a sua paixão transplantada consigo para os Estados Unidos, depois aqui continuadamente cultivada.
Já em 2007 inicio o doutoramento em Estudos Portugueses no Departamento de Português da University of Massachusetts-Dartmouth. Com surpresa, algum tempo depois reencontro o Sr. Côrte-Real no Centro de Estudos Portugueses, quando ele confirma estar a doar a sua biblioteca particular à universidade.
Entretanto, vou fazendo o meu percurso até à defesa do projeto de investigação em dezembro de 2009. Estava decidido: iria escrever sobre os Açores com a consciência de se tratar de uma empresa arriscada, também pela dificuldade na obtenção de alguns títulos para a minha investigação.
Em janeiro de 2010 a urgência de mais um part-time combinada com os meus interesses académicos justificam que comece a trabalhar na coleção Côrte-Real já depositada no Arquivo Ferreira Mendes. É assim que desde o último inverno tenho vivenciado uma experiência muito pessoal e imensamente gratificante pela surpresa agradável que sempre recebo quando abro mais uma caixa de materiais chegados de casa do Sr. Miguel Côrte-Real, aqui mesmo ao lado em New Bedford. Aliás, para além do livro, partilhamos ele e eu a passagem por terras comuns, nomeadamente as nossas ilhas açorianas e a Nova Inglaterra luso-americana
Eu nasci na cidade de New Bedford, exatamente nove meses depois dos meus pais emigrarem para os Estados Unidos. Tenho uma fotografia que revejo muitas vezes, tirada como que por coincidência nove meses depois de eu ter nascido, isto é em Novembro de 1967:
Na fotografia a preto e branco ao centro está a menina a meio do pai e da mãe que a seguram pelas duas mãos. A menina tem os pés no chão, mas dá a impressão de estar suspensa no ar. É outono e o momento foi fixado no quintal da casa onde mora a avó Ana no norte de New Bedford.
Deve ser um domingo, porque os pais vestem a roupa da missa e têm tempo para posar para a fotografia. Posar, talvez seja um exagero. A imagem revela uma postura demasiado natural e pouco atenta ao flash. A mãe da menina veste o vestido de lã confecionado na ilha pelas senhoras Bessa há cinco anos atrás. Na altura, a avó Ana não tinha achado boa ideia um investimento no conjunto de vestido e casaco, mas a futura mãe da menina argumentara com o casamento próximo e a avó, viúva e sem rendimentos, acabara por fazer aquele sacrifício. O fato do pai já foi comprado nos Estados Unidos para a festa de batizado da menina. Estão felizes os três, aquela menina chegara apressada nem um ano depois de América, mas estavam a trabalhar e tudo daria certo neste chão desta vez. Pelo menos desde o início do século a família de parte a parte tinha feito experiências de emigração na América.
Pode-se ver que a mãe agasalhou bem a menina para esse dia de outono e calçou-lhe as primeiras botas com que a menina pisa o chão. É para a terra que os três dirigem o seu olhar, a menina por desinteresse pela câmara e os pais porque se fixam na filha.
O contraste com esta outra fotografia é brutal. Só por ironia alguém pode legendá-la de Irene’s birthday. Esta é uma mulher cansada, de tez macilenta e olheiras profundas; o sorriso
forçado num rosto inchado e sem expressão. As mãos da mulher estão frias e ela esfrega-as uma na outra, sentindo a pele seca e áspera. No último mês nasceu-lhe uma verruga no dedo indicador: tudo desde que começou a abrir os caixotes de livros no quarto escuro lá atrás, para mais sem aquecimento no inverno da Nova Inglaterra onde faz falta a cor, segundo uma amiga que comenta as fotos do dia 25 de fevereiro de 2010.
Nesse dia a mulher de tez macilenta e mãos ásperas passou muitas horas a processar livros no quarto desconfortável, e só a muito custo se conseguiu arrastar até ao restaurante depois do horário de trabalho. Está outra vez com uma espécie de gripe que mais não é do que uma reação alérgica ao pó e aos fungos que se libertam daqueles caixotes, mas o interesse é maior do que o desconforto físico. Este jantar também será uma espécie de despedida de um grupo de colegas com quem conviveu nos últimos três anos. Até ao final do verão essa colegialidade desfar-se-á porque sim, porque na América migra-se muito e não há tempo nem estabilidade para sedimentar amizades frágeis transplantadas de outras geografias.
No fundo, a mulher não tem tempo a perder. O orçamento do arquivo para cada aluno não é muito, pelo que decide centrar toda a sua atenção na descodificação da biblioteca pessoal do Sr. Côrte-Real. Ela pretende compreender o fio orientador da formação da coleção, mas também quer perceber os espaços em branco, o que ali não está naquelas pilhas de livros. Enquanto processa os materiais, reflete, porque precisa de dar sentido à ecologia dos lugares da biblioteca pessoal do Sr. Côrte-Real. E convence-se de que para ela, conhecer o coletivo desta coleção é muito diferente de pesquisar títulos numa base de dados.
À mesa do restaurante onde celebra os seus quarenta e três anos, a mulher não deixa de achar curioso o facto do fio da vida a ter levado hoje ali, a partilhar o chão do andar de cima do restaurante onde certamente terão estado os livros do Sr. Côrte-Real nos seus primeiros tempos de América. Vêm-lhe à memória conversas dispersas com o Sr. Miguel ao longo dos anos, principalmente a daquele jantar de despedida da Bela em casa da Glória. Foi aí que ele lhe dissera que quando chegara aos Estados Unidos tinha ido morar no Thomas Building, e como fora duro habituar-se à rudeza do ambiente de trabalho na fábrica, depois de uma vida tão diferente nos Açores; que até chegara a ganhar mais do que Salazar…
Nesse mês de fevereiro de 2010, o aniversário da mulher do livro acabou por se tornar no pretexto para ir ao encontro do primeiro chão estável dos livros do Sr. Côrte-Real em New Bedford. Ela ri-se para si mesma, ao observar o movimento dos empregados de mesa nesse edifício construído pelo libanês irascível que faleceu logo após a conclusão das obras com data de 1922. E recorda também a confidência do neto da senhora libanesa viúva e analfabeta, maltratada pelo seu homem e depois ela própria chefe de família daqueles já filhos americanos. Rosa Manca, atenta ao privilégio de uma educação formal, soube mandar os filhos estudarem em escolas conceituadas. Para a comunidade portuguesa da Rivet Street, Rosa Manca, foi a libanesa mais portuguesa do sul de New Bedford.
O tempo voa, o inverno acabou, assim como a primavera e o verão. A coleção Côrte-Real foi processada, apesar de alguém ter dito à mulher com um meio sorriso que ela faz trabalho de escrava. Nesse momento, a menina da fotografia de 67 segura pelas mãos do seu pai e da sua mãe ofendeu-se, mas interiormente a mulher de tez macilenta e olheiras profundas argumentou contra. A mulher madura sabe que não é uma escrava, tem a certeza de que o seu é um percurso de liberdade intelectual, com vista ao conhecimento pessoal de uma certa açorianidade num contexto luso-americano. Sabe que este foi o chão que pisou com as primeiras botas!
Os açorianos e esta questão incontornável de se debaterem entre um chão e uma viagem. Gostaria de partilhar convosco duas páginas pertencentes à coleção Côrte-Real da autoria do mariense José Inácio de Andrade, que viveu entre 1779 e 1863. Urbano Mendonça Dias em Literatos dos Açores refere-se à sua carreira de oficial da marinha mercante e à aquisição de uma fortuna pessoal que posteriormente permitiu àquele açoriano tornar-se membro eleito da Direção do Banco de Lisboa e de Portugal e exercer as funções de Vereador e de Presidente temporário do município de Lisboa entre 1838 e 1839.
José Inácio de Andrade é autor de:
- Memoria dos feitos macaenses contra os piratas da China e da entrada violenta dos ingleses na cidade de Macau (1835);
- Discurso (1838) acerca da experiência municipal;
- Cartas escritas da India e da China nos anos de 1815 a 1835 (1843). Estas cartas são dedicadas a sua mulher D. Maria Gertrudes Andrade.
Passo então a ler uma passagem da obra publicada em 1843, sobre a qual tecerei alguns comentários acerca da curiosidade açoriana por realidades para além do horizonte das ilhas…
Irene de Amaral
Irene de Amaral é licenciada em Ensino de Português e Francês pela Universidade dos Açores e possui um mestrado em Supervisão Pedagógica na especialidade de Ensino de Português, pela Universidade de Aveiro. Foi docente e gestora escolar no contexto do ensino secundário nos Açores entre 1989 e 1999. Desde 2001 tem lecionado Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas no ensino superior nos Estados Unidos. Atualmente está a concluir um doutoramento em Estudos Lusófonos na Universidade de Massachusetts-Dartmouth com uma tese sobre a emergência da mulher para uma re-visão da identidade açoriana.