Ao Brasil arribei eu com um atraso de quase quinhentos anos sobre Cabral mas felizmente a Santa Catarina reduzi para metade a diferença sobre a chegada dos meus patrícios açorianos e sinto-me como na minha primeira ida ao Rio onde tudo parecia déjà vu por o cenário ser decalque do que eu fora pintando no meu imaginário ao longo de anos De novo tudo nestas paragens igualzinho a lembrar-me aquele açoriano a quem perguntaram se alguma vez tinha ido à América e ele respondeu pessoalmente nunca Eu pessoalmente também nunca a esta ilha aportara mas nem por isso tive de fazer a imprescindível visita primeira de turista pois aqui me trouxeram memórias imaginadas mesmo durante meus anos de marinheiro em perdida distracção aí para cima pelos nortes onde dei à costa numa outra ilha a décima L(USA)lândia também chamada sabendo haver aqui esta Santa Catarina ilha de verdade que agora reconheço parente bem mais chegada aos meus Açores a ponto de disputar até o direito ao uso desse número ordinário a seguir à nona do Corvo
Eu que em tempos idos num solene discurso em oficialíssima celebração da diáspora açórica ao ouvir a Lélia catarinense reclamar na fala vocálica e franca brasileira que também ela era uma açoriana mas uma açoriana de duzentos e cinquenta anos ordinariamente gozei do fundo da sala Olhe que está muito bem conservada mal sabia da verdade profunda que na maldade que Deus me deu e nunca me tirou eu ignorante ironizava E foi essa minha queda de supetão na ilha que me fez sentir em casa logo ali no Bar do Arantinho reclinado na praia em regaço do Pântano do Sul a comer pirão de água e siri entre paredes forradas de mensagens doces de clientes tocados pelo lugar onde a gente ouve a música do Carlos Alberto Moniz a sair pelas frestas e a misturar-se com a brisa o Arantinho a contar estórias das touradas à corda em tempos vindas da Terceira nos barcos dos sortudos escapados aos temporais e a meses de padecimentos de tripas de fora e sem um canto para dormir O Arantinho a contar danado contra os que nada entendiam de tradições da ilha nem do espírito festeiro incorrigível (Aldírio Simões dixit no Fala Mané) desses prezados tataranetos ou antes decanetos terceirenses e essas vozes de fora querendo acabar com as touradas em versão inofensiva para os animais e as pressões políticas de um lado e de outro a proibição a vir de Brasília e o truque de um foguete a anunciar às escondidas da noite o que só os locais sabiam ser farra do boi na praia como eles chamam as touradas e noutro lugar até baptizaram de festa do torresmo e da linguiça para fugir à ordem da lei e o governador a mandar a polícia avisando porém Vai lá mas vai muito devagar
Depois foi o meter-me ilha dentro e perceber com Vitorino Nemésio que percebeu por sua vez que o português percebeu / que isto de ser brasileiro / é questão de começar mas ali cruzando-me sempre com nomes ilhéus Lacerda Nunes Simas Rosa Dutra Goulart Silveira e lembretes de linguajar terceirense estupor inticá intisicá tás tolo entonces contar causos e a ilha acenando-me fraternalmente das casas de comércio Padaria Açoriana Hotel Faial Mercado Açoriano Edifício Ilha Graciosa Caminho Açoriano Praia dos Açores e um final de tarde no Rancho Açoriano em Ribeirão da Ilha no aconchego de casas das minhas ilhas a salpicar a paisagem uma luz quase tropical decorando as águas calmas da baía um silêncio no ar um paraíso cá no íntimo abandonado apenas por um salto da memória aos anos da arribada dos meus patrícios sem nada no corpo e quase também sem nada dentro dele que pouco deveria restar do que iam soltando na viagem para alimento dos peixinhos e tubarões
De regresso à magia desta terra e mar por todo o lado o abraço dos locais no açúcar desarmante do seu trato no refrão dos por gentileza e esteja à vontade a desbobinarem em laudas as festas do Divino a música o artesanato e o ressurgimento do interesse no Manezinho da ilha rosto de antanho até há pouco ostracizado pelos êxitos colonizadores dos alemães e suas louras maricotas em Blumenau Pomerode ou Fraiburgo provocando uma geração patriarca feita de Osvaldos Nereus e Piazzas que desaguou noutra jovem falando de tradição como se de invenção se tratasse mas eles reclamam de mera reconstrução ajustamento ao real que na alma lhes vem plantado de há séculos Tudo isso me fez irmanar àquela gostosura de Brasil por onde o meu tio Dias andou noutros tempos negociando e em cartas para a mãe minha avó tecia loas a Santa Catarina e tudo o que do Paraná para baixo fosse por lá se sentir definitivamente em casa como eu aliás agora me sinto E fui aceitando toda a música doce aos meus ouvidos e afinando pelo mesmo diapasão quando um garçon num Bar Açores chamado e Brites de seu nome me perguntou se esse seu apelido era açoriano e eu desatento na minha imparcialidade académica a explicar-lhe parecer-me mais continental até ele de súbito triste insistir se não podia ser também açoriano e eu pois claro que se não for pode dar-se um jeitinho que não tenho qualquer objecção histórica onomástica genealógica filológica geográfica rácica nem religiosa pois a verdade é que às vezes me parece no fundo eu querer é que todo o mundo seja como os Açores da minha infância e naturalmente só na minha cabeça tudo era direitinho tudo no seu lugar mar e céu abraçados de azul lagoas e caldeiras molhando olhos de deslumbramento
E por isso leve como estava pés sem tocarem no chão pus-me com a Leonor a subir a serra do Rio do Rastro e quedei-me depois naquele planalto sem fim na sedução do canyon ali no Morro da Igreja e na Serra do Corvo Branco a respirar um ar quase em transe que me meteu num outro mundo duzentos anos antes da minha infância quando tudo aquilo era virginal e ignoto Deixei-me ficar suspenso suspenso suspendendo tudo o que julgava entender sobre identidade formada na infância e adolescência e suspenso no ar ficarei depois dessa aterragem em dia azul tropical límpido e puro na que os primeiros povoadores meus conterrâneos chamaram por alguma boa razão ilha do Desterro mas que afinal floriu em Florianópolis e até suspeito bem poderá em tempos ter inspirado Camões naquele devaneio idílico e quase adolescente da sua ilha dos Amores
Em Post-Scriptum no avião de regresso leio na Icaro Brasil FHC badalando numa entrevista A Ilha de Santa Catarina é o máximo um falar pouco criativo está visto vergonhenta pobreza de expressão de nem parecer linguagem de sociólogo muito menos de Presidente porque Santa Catarina é claro pois Santa Catarina é quer dizer Santa Catarina é homessa se calhar não consigo mesmo inventar melhor dizer
Ref.Bibliográfica:ALMEIDA,Onésimo T. Prosema a Santa Catarina, In: Onze Prosemas (e um final merencório). Ed.Ausência,Vila Nova de Gaia.2004:45.
Legendas e Créditos das Imagens:
1. Arrastão, Praia do Santinho, Norte da Ilha: M.Qüint
2. Bar do Arante, Pântano do Sul, Sul da Ilha: Lélia Nunes
3. Serra do Rio do Rastro, Planalto Catarinense: Adriana Füchter
4. Morro das Pedras, Sul da Ilha: Lélia Nunes
Sobre o Autor ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA:
Nasceu no Pico da Pedra,na Ilha de S. Miguel, Açores. Vive desde 1972 nos EUA. Doutorado em Filosofia pela Brown University (1980) é Professor Catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, Providence, Rhode Island, EUA. Divide a sua atividade literária entre o ensaio académico e a escrita criativa, colaborando regularmente também em publicações culturais como a Revista LER e o Jornal de Letras, de Lisboa. Publicou no Reino Unido uma tradução de contos luso-americanos extraídos do livro (Sapa)teia Americana. A colectânea intitula-se Tales from the Tenth Island.(2006). De entre os seus livros contam-se, no teatro: Ah! Mònim dum Corisco! (Eurosigno, P.Delgada. 1991) e No Seio Desse Amargo Mar (Salamandra, Lisboa. 1992); na crónica, os mais recentes são: Que Nome é Esse Ó Nézimo? (Salamandra, 2ªed. Lisboa. 2002), Viagens na Minha Era (Salamandra,Lisboa,2001) e Livro-me do Desassossego (dia-crónicas)(Temas e Debates,Lisboa.2006); no conto, (Sapa)teia Americana (Salamandra,2ªed .Lisboa. 2000). Publicou ainda um livro de prosa poética: Onze Prosemas (e um final merencório)(Ausência,Vila Nova de Gaia.2004).
A sua obra mais recente é Aventuras de um Nabogador & Outras estórias-em-sanduíche"(Bertrand, Lisbo. 2007).