Quando lemos quem amamos
Vamberto Freitas
Não será nunca só a indizível saudade que me faz reler a mulher que amo, não será só querer recordar a sua viva voz nos dias que foram os nossos. Da sua silenciosa existência, agora sei eu, acompanha-a todos os dias, e nem sempre o choro me faz abraça-la e dizer-lhe boa noite, olho-a como quem olha para o luar no lado de fora da nossa janela, mas vendo a sua cara, a sua alma a flutuar perto e longe de mim. Fecho-me numa outra sala, e reabro os seus livros, fixo-me por longos instantes nas suas palavras, e todo um mundo renasce em mim. Sou agora a sua memória, mas a sua prosa e poesia continuam a ser uma parte indelével da minha vida. Não é pouco, é todo um universo a que pertenço, esse que foi nosso e só nosso, que me deixou sem nunca nada me pedir, que me dá e dará sempre sentido a eu ter sido alguém a quem foi permitido estar junto dela, a luz a colorir a nossa casa e a noite a calar fundo as palavras inúteis, fazendo do seu toque e olhar tudo o que significava vida vivida e o desejo de um outro amanhã.
Não, não se foi, nunca partiu, apenas adiou um nosso reencontro num infinito sem dor, o que numas das suas poesias chamou Viagem ao Centro do Mundo. Adormece agora sem mais se recordar desses momentos ou das palavras, ditas e escritas não para qualquer glória futura, só para que permanecesse o “instante suspenso”, como diria de si próprio um outro amigo nosso nas suas horas de inquietude e desejo. Já não chora nem sei se sonha, olha apenas o invisível, o Nada que é o seu mundo sem princípio nem fim, não sei se me conhece ou se me lembra alguma vez, do beijo que dou fico só com o sabor da sua cara e os seus olhos sem expressão. Está aí, e nela me vejo, sei e saberei sempre quem é. Sei que sou a sua memória. As palavras que me deixou escritas são o seu ser inteiro e intacto. Derrama em mim não só a mulher que é, entrega-me a única razão de estarmos aqui, entrega-me o mundo que só alguns tiveram e têm a felicidade de conhecer e de viver. É muito, quer seja o espaço todo na sua escuridão misteriosa ou na sua luminosidade celeste. Tudo o resto nada diz, nada significa, ninguém nos salva ou nos condena. A sua escrita não são meras palavras para mim. São todo o seu ser na beleza que de quando em quando vivemos num passado que se afasta cada vez mais. Esqueçamos o resto. Já não me conhece, como me parece algumas vezes? Conheço-a eu, e um beijo meigo, a minha voz entrando no seu quarto, ainda lhe faz sorrir e tentar olhar-me. Que mais poderia desejar um homem?
Quando releio o seu Viagem ao Centro do Mundo, publicado em 1994, revisito com ela não só o seu mais profundo ser, o seu interior em estado de felicidade e saudade, como revejo todas as geografias dos seus grandes afectos, das suas saudades, das suas perdas, da sua infância, e sobretudo da mulher em busca de si própria. Não, não me entristece, faz-me caminhar a seu lado, faz-me admirar ainda mais uma vida feita de partidas e chegadas, relembra-me dos seus mais íntimos desejos, dos seus mais sentidos desgostos e amores. Ela e a natureza estiveram sempre em comunhão sagrada, cada pedaço da terra de Deus o seu porto seguro, cada memória dos seus em longínquas paragens americanas, mais do que uma presença, faziam-na reviver um tempo que havia sido, mas nunca por mim esquecido. Entrava nas suas aulas para transmitir não apenas o saber dos livros, mas também a sua pessoa como ser vivo e personagem. A literatura não eram só palavras, era vida, era história, era arte, era empatia por quem a ouvia e com ela aprendia. Entrou na política com a convicção de que o mundo também era de todos, e todos o deveriam reconstruir, um pobre não era um pobre, era um homem ou uma mulher em busca da dignidade e da vivência a que tinha direito. O poder era para ser combatido ou utilizado no bem comum, não admirado e muito menos bajulado. Tinha os seus maus momentos e raiva momentânea? Entrava numa igreja, só, e meditava.
Eu quero viver desesperadamente
Pôr emoções em movimento
Marcar rituais idos e por vir
Festejar o entusiasmo e a alegria.
Quero subir escadas, partir perna
Vogar no mar, livre e etérea.
Quero o palpitar do coração
No rosto uma flor em cada festa.
Quero cair, levantar, sair,
Ao estático nunca pertencer
Gargalhada quero em eco vibrante
Ressoar mundos dentro de mim.
Quero o choro em catadupa volante
Seguido de um sorriso de marfim
Quero o gesto do tacto desenhado
em doação e entrega sem fim.
Alguns anos depois viria a injusta sentença, mas antes de resumir toda a sua sorte de vida no quase profético e mais ou menos autobiográfico romance Sorriso Por Dentro Da Noite debruçava-se sobre toda uma vida açoriana e americana transfiguradas, outra metáfora da história do povo açoriano no seu destino de andarilho, e de rejeição à miséria, à injustiça, à prepotência medíocre de terra-tenentes e comunidades sujeitas às maiores indignidades e isolamento. Como em quase toda a literatura da nossa geração, eram só os navios vistos à distância em mares bravos e rumo à América que significavam e metaforizavam a nossa salvação. A sua autora muitos anos antes insistiria em regressar aos seus Açores, e aqui desafiar essa história e esse destino que agora prometiam uma outra maneira de viver a terra que é a nossa. Na sua outra poesia De Emigração Tecido havia de dizer da dor de uma “exilada” numa Nova Iorque que tudo prometia, mas a um preço, por vezes, quase desumano. Cada um de nós viveu e vive a sua própria sorte. Quando nos conhecemos, essa poesia mexeu comigo de modo muito especial, e ela não a publicava. Ser professora de literatura numa universidade portuguesa trazia certos constrangimentos (que hoje, parece, já não existem), era a inveja de uns e certa petulância de outros. Entretanto, haveria eu de a convencer a tirá-la da gaveta, numa carta enviada ainda Califórnia, e que agora está na sua contracapa.
“Li De Emigração Tecido – escrevi então – e felicito-me por uma poesia do tempo perdido e apreendido, esse inescapável tema da nossa existência e arte atlânticas, esse quebrar o isolamento físico e psíquico, para uma vez mais tão brilhantemente agarrar de novo a vida. Estarei muito fora da tua escrita poética quando aí vejo a dor como passo fundamental para uma renascença e contínua aventura que é a vida de cada um e de todos nós? Quando nessa tua linguagem límpida e não-sentimental negas o niilismo que a muitos está corroendo nos confusos dias (como diria o falecido James Baldwin) de indizível caos da colectividade? Vejo ainda nas tuas comovidas páginas De Emigração Tecido uma tremenda luta entre o indivíduo que insiste em sobreviver bem vivo e uma Natureza que, no meio desse mar, conspira perpetuamente para amordaçar o Homem, ora aterrorizando-o, ora oferecendo-lhe miragens da sua indescritível beleza. É um triunfo absoluto da Vida e da Beleza; uma ode linda à força humana, ao seu optimismo, determinação e vontade de viver”.
Por agora, não lhe queria dizer mais nada. Tenho aqui à minha frente todos os seus outros livros, e aberto, uma vez mais, O Sorriso Por Dentro Da Noite.
“Oh, vovó, Quem me dera, quem me dera – escreve Adelaide – ser pequenina, feita de nada; regressar aos tabiques da parede, esconder-me como quando era criança, voltar ao velho quintal, respirar o aroma de cada flor, sorver o rosa-lilás do pessegueiro, e saborear o araçá da cor do girassol, Eu quero é desaparecer daqui, vovó”.
Tenho, repito, todos os seus livros em minha frente, para além dos inúmeros escritos espalhados pelas mais diversas revistas universitárias e literárias. Está no seu descanso no quarto ao lado – e eu na minha turbulência de saudade, respeito, homenagem e gratidão.
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Adelaide Freitas, Sorriso Por Dentro Da Noite, Braga, Editora Ausência, 2004. Publicado a minha coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 24 de Março, 2017.
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