O Vale dos Pioneiros estende-se ali para as bandas do Oeste de Massachusetts nas margens do rio Connecticut. De entre as terras mais conhecidas lá está Amherst, onde Emily Dickinson viveu no século XIX, deixando no imaginário americano uma inspiradora marca de força feminil. A região tornou-se conhecida também ao transformar-se num conglomerado universitário de alto nível, contando com cinco universidades públicas e privadas que estabeleceram entre si um regime de cooperação notável ao longo dos anos e acabaram por exercer uma profunda influência cultural na região. Comunidades portugueses há duas apenas de tamanho significativo – Ludlow e Chicopee – que portugueses por todo o Massachusetts é o que menos falta. Daí que um conhecedor da geografia física e social da Nova Inglaterra, mas desatento ao mais, naturalmente se interrogue sobre o título deste livro. No Vale dos Pioneiros há afinal um quase solitário pioneiro português, açoriano, terceirense, catedrático de Literatura Portuguesa na University of Massachusetts Amherst, o principal campus da universidade estadual que conta outros três (Lowell, Boston, Dartmouth), e ainda uma faculdade de Medicina em Worcester. Ao Vale dos Pioneiros foi parar o autor destas narrativas, Francisco Cota Fagundes, após um doutoramento na igualmente prestigiosa University of California, Los Angeles, por sua vez depois de uma marcante experiência de imigração no Vale de San Joaquin, cenário do seu baptismo americano, mal arribado que fora da Agualva, na sua ilha Terceira.
Esses seus anos duros de imigrante foram por ele magistralmente narrados numa autobiografia que seria um romance se o autor não reclamasse não estar a fazer ficção, mas a escrever na primeira pessoa o que a memória lhe ditou. Hard Knocks – an Azorean-American Odyssey é na verdade a odisseia de um moço como milhares de outros dos Açores saídos já com anos de rodagem na labuta da terra sobre os quatro de anos de escolaridade que o salazarismo generosamente nos concedia. No relativamente magro elenco das autobiografias relatando as experiências da nossa emigração, essa obra de Francisco Fagundes ocupa um lugar tão cimeiro que escolher um segundo lugar se torna quase inapropriado. Ainda não editada em português por decisão do autor, ela constituirá um acontecimento assinalável quando um dia for publicada em Portugal, sobretudo hoje que finalmente o gosto português se começou a habituar ao género biográfico e autobiográfico.
Autobiográficas são também estas estórias (ou narrativas, como o autor escolheu chamar-lhes). Hard Knocks termina quando cessam as grandes lutas que Francisco Cota Fagundes teve de travar para conseguir inserir-se numa universidade exigente e funcionar entre os colegas como se toda a vida tivesse sido estudante igual aos demais colegas. Os leitores de autobiografias deliciam-se a ler histórias dramáticas, de rijas e insanas lutas, e até gostam de um happy end, mas desligam depois de se aperceberem que tudo acabou bem. Estas são, por isso, estórias da vida de um académico de carreira, perfeitamente integrado nas estruturas da universidade e das organizações profissionais, reconhecido por alunos como um excelente professor e pelos colegas como um scholar de gabarito, com extensa obra publicada em livros[1], coordenação de volumes[2] e ensaios disperso em inúmeras revistas e obras colectivas, cuja temática se estende de Fernando Pessoa a Jorge de Sena, de Branquinho da Fonseca a Miguel Torga e Vitorino Nemésio, com traduções diversas de permeio também publicadas em livro[3], escrevendo tanto em inglês[4] como em português, um exemplo paradigmático de bilinguismo.
Posicionado entre dois mundos, um olhar de relance pela sua produção torna evidente que Francisco Fagundes não abandonou os seus ossos de português ilhéu porque assim veio feito da ilha por ter emigrado já adulto. Daí a acumulação de experiências brotadas do confronto natural entre a cultura que o recebeu e a que ele ainda traz sob a pele, apesar de uma adaptação gradual, e já longa, ao novo meio. Ou aos novos meios, porque ele emigrou duas vezes – primeiro para a Califórnia e depois para o Massachusetts, ou talvez melhor, primeiro para o Vale de San Joaquim e depois para o Vale dos Pioneiros. Ou ainda, se quisermos, primeiro para as dairies californianas e depois para o mundo académico.
Não precisam de introdução estas narrativas. Auto-explicam-se no folhear-se das páginas, algo que se faz com crescente entusiasmo até terminarem sem autorização do leitor que aposto não terá intenções de chegar tão depressa à contracapa. Ele são aqui pequenas estórias do dia a dia de que o autor se serve para nos fazer mergulhar numa faceta da vida de um português em choque com a cultura americana, ou ali exactamente o contrário, um incidente com um portuga visitante, arrogante e convencido – normalmente um académico pensando-se em terra inculta e estatelando-se sem dar por isso porque não chega a ter discernimento para assessorar o seu ridículo. Num caso, trata-se mesmo de "um pénis ilustre lusitano" que não se apercebe de estar a pisar terreno sob o patrocínio e protecção de Emily Dickinson e portanto pouco receptivo a autoconvencidos machos lusos. Mas o leque é diversificado. Uma estória segue-se a outra saltitando de lugar e de tema. Pode ocorrer tanto no Cape Cod como num autocarro a caminho da universidade, num museu em Washington, em Tulare da Califórnia, no Rio de Janeiro, nos Açores ou em Coimbra, afinal o universo do autor sediado no Vale dos Pioneiros, o centro aonde as narrativas regressam sempre, com um contraponto em Portugal, particularmente nos Açores a que ficou inevitavelmente ligado. Mas podem igualmente debruçar-se sobre a dificuldade da comunicação humana ("Gaguez" é um exemplo tão estranho como notável), bem como sobre o irritante legalismo da bitchy Gertrudis Eisenmenger, funcionária da universidade, ou ainda aventurar-se pela experiência do Man’s Resource Center onde homens vão chorar profusamente as suas mágoas. O olhar penetrante nas situações, nas ironias da vida, no ridículo que por vezes ataca com sarcasmo a lembrar a Jorge de Sena, seu grande mentor e de cuja obra se tornou profundo estudioso. Ele há retratos magistrais como o do sogro António e da sogra Rosa, que convidou para viverem numa repartição anexa a sua casa "a troco da língua açoriana para o filho", mas que afinal acabou venerando em páginas de comovente humanidade. O retrato pode, entretanto, ser uma gatinha que lhe adoeceu e cujo convívio perdeu para sempre e que é recordada em pinceladas carinhosas escritas como quem afaga o macio e morno pêlo dela, a lembrar esse outro magnífico relato da morte da cadelinha Girafa de Cristóvão de Aguiar no seu Raiz Comovida.
Estas páginas são uma janela aberta sobre o mundo de um universitário português nos Estados Unidos, viajando entre os dois lados do rio Atlântico mas também saltitando entre o universo da L(USA)lândia e o imenso meio americano, aparando choques aqui, evitando embates acolá, enfrentando ostracismos e sobrancerias ou desculpando ignorâncias de um e de outro lado e tentando curá-las. Há de tudo nestas narrativas escritas de alma escancarada, e saradas já as antigas feridas, ditadas de uma perspectiva de quem acumulou muitos anos de sabedoria aprendida no percurso. Há inclusive páginas pungentes sobre dolorosas experiências com graves doenças na família.
As marcas do escritor ressaltam destas linhas. São as referências aos "invernos infernais" da Nova Inglaterra; as conversas com o Pedro-cubano, "que vivia a metros da minha casa e a centímetros da minha língua"; "o laguinho daquele chorar"; a Baía de Copacabana com "beleza que daria para meia dúzia de cidades americanas"; o brasileiro Olavo que "mentirava muito"; "a biblioteca do paladar"; "é de ilusões que nos alimentamos e vivemos na diáspora. E são as realidades que nos matam"; "Camões – um Milton português que preferiu falar de Vénus e Baco, a discorrer sobre Deus e o Diabo"; e por aí fora no entremeio de estórias das quais não poderei deixar de ressaltar a da Mrs. Townsend, no Cape Cod, que lá sabia a razão das saudades que tinha desse grande capitão português, o Manny Zora. E eu, que numa estória escrita há anos referi o anúncio comercial visível num placard da estrada do Outer Cape, sobre os areais das imediações de Provincetown – "Over the dunes with Joe Nunes" – vim a aprender que o Joe Nunes tinha afinal muito para contar.
Para além do professor catedrático, do ensaísta, do tradutor, do escritor em inglês, temos agora o escritor português, a presentear-nos com flashes iluminando de vários ângulos um retrato multifacetado, complexo e rico da personalidade do seu autor.
A Agualva exportou para os Estados Unidos um bocado de mármore esfarrapado dos caminhos do mato, batido pelas ventanias e a cobrir-se de musgo nas frestas húmidas. Recebe agora uma escultura burilada e polida que deveria ficar no imaginário da terra e da ilha como modelo da possibilidade humana.
Onésimo Teotónio Almeida, Brown University, Providence, Rhode Island.
Irene Maria F. Blayer
23-07-08
[1] A sua obra ensaística inclui: A Poet’s Way with Music: Humanism in Jorge de Sena’s Poetry (Providence, RI: Gávea-Brown, 1988); In the Beginning There Was Jorge de Sena’s GENESIS: The Birth of a Writer (Santa Barbara, CA: Jorge de Sena Center for Portuguese Studies, 1991); As Metamorfoses do Amor: Estudos Sobre a Ficção Breve de Jorge de Sena. (Lisboa: Salamandra, 1999); Desta e da Outra Margem do Atlântico: Estudos de Literatura Açoriana e da Diáspora. Lisboa: Salamandra, 2003). Escreveu também o livro didáctico Um Passo Mais no Português Moderno: Gramática Avançada, Leituras, Composição e Conversação (Dartmouth: Center for Portuguese Studies & Culture, University of Massachusetts Dartmouth, 2004).
[2] Com José Ornelas, Jorge de Sena: o Homem que Sempre Foi (Lisboa: Instituto de Língua e Cultura Portuguesa, 1992); "Sou um Homem de Granito": Miguel Torga e Seu Compromisso (Lisboa: Salamandra, 1997); Ecos de Uma Viagem: Homenagem a Eduardo Mayone Dias (Providence, RI: Gávea-Brown, 1999); com Paula Gândara, Para Emergir Nascemos: Estudos em Rememoração do Vigésimo Aniversário de Jorge de Sena (Lisboa: Salamandra, 2000); com Paula Gândara, Tudo Isto que Rodeia Jorge de Sena: An International Colloquium (Lisboa: Salamandra, 2003); Vitorino Nemésio and the Azores, volume especial de Portuguese Literarary & Cultural Studies 11 (Dartmouth: Center for Portuguese Studies and Culture, 2007); com Irene Maria F. Blayer, Oral and Written Narratives and Cultural Identity: Interdisciplinary Approaches (New York: Peter Lang, 2007); com Irene Maria F. Blayer, Tradições Portuguesas / Portuguese Traditions (San Jose, California: Portuguese Heritage Publications of California, 2007); com Irene Maria F. Blayer, Narrativas em Metamorfose: Abordagens Interdisciplinares (no prelo).
[3] Traduziu o livro de contos Genesis, de Jorge de Sena (Santa Barbara, CA: Jorge de Sena Center for Portuguese Studies, 1991); com James Houlihan, também de Jorge de Sena, Art of Music (A Arte da Música) (Huntington: University Editions, 1988), e Metamorphoses (Providence: Copper Beech Press, 1991); The Baron (O Barão), de Branquinho da Fonseca (Santa Barbara, CA: Center for Portuguese Studies, 1996); Stormy Isles: An Azorean Tale, de Vitorino Nemésio (Mau Tempo no Canal) (Providence, RI: Gávea-Brown, 1998. Traduziu ainda cerca de meia centena de poemas cabo-verdianos (em português), incluídos no volume Across the Atlantic: An Anthology of Cape Verdean Literature, org. por Maria M. Ellen (North Dartmouth, MA: Center for the Portuguese Speaking World, Southeastern Massachusetts University, 1988), bem como, do inglês, Um Português na Corrida ao Ouro: A Autobiografia de Charles Peters (Lisboa: Salamandra, 1997).
[4] Veja-se a sua autobiografia Hard Knocks: An Azorean-American Odyssey (memoir) (Providence: Gávea-Brown, 2000).