Álamo Oliveira recorda fundação do grupo de teatro que fez 40 anos a 10 de Janeiro último:
"Não houve nada de poético na criação do Alpendre" – Diário Insular, Angra do Heroísmo, Ilha Terceira.
Poucos grupos de teatro em Portugal podem orgulhar-se da marca das quatro
décadas de vida. O certo, ainda assim, é que um dos nomes que fazem parte
dessa lista restrita está nos Açores. O Alpendre, nascido e criado em
Angra do Heroísmo, fez ontem 40 anos.
A longevidade do grupo de teatro amador poderia fazer adivinhar histórias
de fundação fabulosas, mas não. Álamo Oliveira, escritor que esteve
ligado à sua criação, é perentório: "não houve nada de poético na criação
do Alpendre".
A verdade é que o Alpendre, um dos grupos mais importantes dos Açores,
surgiu de uma necessidade: era preciso arranjar trabalho a um professor
de Expressão Teatral do magistério primário, Leonardo Melo, e os amigos
acabaram por juntar-se para levar à cena "Guerras do Alecrim e da
Manjerona", de António José da Silva. A peça, que estreou a 27 de
dezembro de 1976, esteve no Teatro Angrense por três vezes, até ao final
desse ano. A casa esteve sempre cheia, recorda Álamo Oliveira.
"Esse trabalho acabou por correr bem, apesar de todos os contratempos.
Chegámos a ensaiar debaixo de um alpendre – e é daí que vem o nome. O
certo é que não tínhamos nada a que nos pudéssemos apegar, fizemos uma
peça muito simples: uma opereta que passou a comédia. Mas a coisa pegou
bem. Também fizemos na melhor época possível, hoje isso já não
acontecia", conta.
Nesse tempo, quando a televisão ainda era criança e emitia apenas algumas
horas por dia, o teatro era uma boa distração. E o facto é que o público
queria ver as novidades que se apresentavam em palco. Desde essa altura,
o Alpendre não parou, tendo levado a cena 98 peças.
As peças nunca se destinaram a um público mais urbano. Durante muito
tempo, os atores do grupo amador apresentaram-se nas freguesias e foi a
partir daí que perceberam que valeria a pena continuar – até a apresentar
textos fora do comum.
Para Álamo Oliveira, que hoje é presidente da assembleia geral do
Alpendre, houve, nos seus primeiros tempos de vida, "uma certa
ingenuidade", também responsável pelo sucesso e pela longevidade do
grupo.
"Politicamente as coisas não eram fáceis em Angra do Heroísmo. No
princípio tínhamos gente de todos os quadrantes políticos, da extrema
esquerda à extrema direita, que ali eram todos amigos: deixavam os
cartazes à porta e quando saíam é que iam colá-los – às vezes emprestavam
cola uns aos outros", refere.
Em 40 anos, o grupo, que começou com alguns atores jovens e sem
experiência, mudou muito. O Alpendre deixou de ser apenas um espaço onde
se encontravam os amigos que queriam fazer mais do que apenas conversar.
"Hoje as coisas são muito diferentes – as pessoas estão no Alpendre mais
por razões teatrais do que por mero convívio. Para nós o teatro era o
nosso ponto de encontro, era onde se juntava um grupo de pessoas que
queria sair de casa para fazer mais qualquer coisa do que apenas
conversar", sustenta.
A aceitação do Alpendre, não só junto do público, mas também junto de
entidades oficiais, ajudou a que o grupo se mantivesse por quatro
décadas. A participação em efemérides importantes, como o aniversário da
Batalha da Salga ou o centenário de Alexandre Herculano, foram
fundamentais para a afirmação do teatro amador terceirense, protagonizado
pelo grupo angrense.
No grupo, o destino poderia ter sido escrito de outra forma, até porque o
percurso nem sempre foi linear. O Alpendre também enfrentou crises, até
crises políticas relacionadas com o trabalho que apresentava em palco.
O fundador do grupo lembra-se, por exemplo, de uma reunião de emergência
de membros do Governo Regional, motivada por uma crítica publicada no
jornal A União a uma peça baseada n’ "O berço do herói", da autoria de
Dias Gomes.
Nessa altura, sustenta Álamo Oliveira, o teatro era um divertimento, mas
o grupo sabia quando corria riscos.
"Nós pensávamos nos riscos que poderíamos correr. Queríamos que as peças
tivessem uma mensagem. Foi o caso do ‘Auto da justiça’, que acabámos por
apresentar em várias freguesias. Pensávamos que não íamos ter público,
foi logo a seguir ao sismo de 1980. As casas tinham caído, nas freguesias
e na cidade tudo tinha caído, mas as pessoas saíram para ver a peça",
recorda.
TEATRO DE QUALIDADE
É teatro amador, com certeza mas, para o escritor natural do Raminho, o
teatro que se faz no grupo terceirense que agora chega aos 40 anos não
fica atrás, em nada, àquele que se faz em Lisboa, por exemplo.
"O teatro que tenho em visto em Lisboa não é em nada superior àquele que
se faz no Alpendre. É verdade que eles também têm problemas – lá é como
cá, há grupos com dois ou três atores porque não há dinheiro para fazer
grandes coisas. Mas a qualidade e a evolução técnica que o Alpendre foi
sofrendo é óbvia", entende Álamo Oliveira.
Para o atual presidente do Alpendre, Valter Peres, o segredo está no
lugar que o grupo foi ocupando nas vidas de quem nele se envolveu.
"Quando se faz do teatro a vida, ele transforma-se na própria pele e
sentimos que é, como diz Frederico Garcia Lorca ‘poesia que sai do livro
para fazer-se humana’. É por isso que o Alpendre ainda hoje se mantém
vivo, exatamente porque foi para todos os que por ele passaram, a
prioridade", escreveu, num texto publicado na edição de ontem do DI.
Nesse texto, Valter Peres lembra, de resto, a importância do Alpendre na
formação cultural da Terceira.
"Para além de fazer rir e chorar o teatro é fundamental para a formação
cultural de um povo, é entretenimento, mas também forma de expressão
social e política. O Alpendre foi-o ao longo dos tempos e será, sempre
que alguém subir ao palco. A contemporaneidade não pode dar-se ao luxo de
dispensar o teatro, pelo contrário, basta observar a padronização da
sociedade, a acomodação, o egoísmo, a passividade… É exatamente neste
contexto que em nos vemos enredados, que o teatro faz mais falta",
sustentou.
Fonte: http://www.diarioinsular.pt/version/1.1/r16/?cmd=noticia&id=87185
Nota: Agradeço a gentileza de Kathie Baker pelo envio da matéria alusiva aos 40 anos do Grupo Alpendre, fundado pelo admirável homem de cultura – "José Álamo Oliveira. Mesmo passados sessenta dias da data natalícia ainda chego a tempo para endereçar ao Álamo e ao Grupo Alpendre o meu forte abraço de parabéns e de reconhecimento por seu inegável trabalho em prol da Arte Cênica nos Açores.Lélia Nunes, Florianópolis,10 de Março.