Que Paisagem Apagarás,
de Urbano Bettencourt:
As Outras Cidades
*
Vamberto Freitas (*)
Comecemos por dizer o óbvio no que respeita à obra de Urbano Bettencourt: Que Paisagem Apagarás é o seu primeiro livro de ficção pura, tanto nos contos e narrativas-outras da primeira parte do livro, como nos (des)aforismos da segunda. Trata-se de um livro que tanto parte para o que desconhecíamos do autor neste género como se integra, perfeitamente, no seu substancial corpus literário, se pensarmos que o poeta é sempre um fingidor pessoano, e o poema um fingimento que por vezes atravessa todos os géneros. Edmund Wilson, o grande senhor da crítica literária norte-americana durante quase todo o século passado, após a sua primeira leitura dos modernistas europeus dos anos vinte, de que nos dá conta em Axle´s Castle (1931), obra fundamental em língua inglesa que introduziu os seus conterrâneos ao que se estava a criar neste lado Atlântico, acreditava e escreveu que muito provavelmente a nova ficção que já tinha marcado presença ou se delineava com autores como James Joyce e Proust, não só chamava a si todas as outras escolas e géneros, particularmente o realismo e simbolismo, mas Wilson aventurava a ideia de que essa prosa meio poética meio empírica absorveria a própria poesia nas suas formas tradicionais. Claro que errou estrondosamente, mas a ideia não será de todo descabida. Poderíamos dizer o contrário também: que a poesia liberta dos constrangimentos tradicionais, desde há muito tornada verso livre ou prosa por outros meios e nomes também procedeu ao contrário do que previa Wilson, assimilando algumas das formas e propósitos da ficção. Precisamente um dos grandes livros de Urbano Bettencourt, creio, contém todas as possibilidades na sua abertura temática e vastidão referencial, Algumas das Cidades, fazendo do presente Que Paisagem Apagarás como que um segundo andamento por outras vias e por outras opções formais. Tenho viajado muito/nem sempre na melhor altura, abre o último poema do referido livro. É efectivamente nesta poesia e prosa-poética antecedente que melhor apreendemos e nos aproximamos ao imaginário simultaneamente íntimo e universalizado de Urbano Bettencourt.
O “autor” da segunda secção de Que Paisagem Apagarás, intitulada “Breves, brevíssimas e (des)aforismos” é de nome Ernesto Gregório, um suposto crítico açoriano de todo ignorante e muito mal disposto, como convém a um “intelectual” universalista afundado num certo charco literário das ilhas em que todos vivemos há algum tempo. “Charco literário” onde não cabem os nossos escritores mais sérios, mas sim as atitudes de certa “intelectualidade” entre nós, alguma dela residente no Continente, e outros tantos cá dentro. Por vezes Gregório acerta acidentalmente nos seus pronunciamentos absolutos, esses que por pura e dupla ironia do texto ele próprio nem alcança nem entende minimamente, manipulado que está por outra inteligência que nestas páginas lhe dá vida e fôlego. “Os maiores escritores açorianos vivos estão mortos”, “Haver ou não…um representante da República junto da literatura açoriana”, ou ainda “O crítico de serviço leu demoradamente o livro Lugares sombras e afectos. E acabou por deter-se numa questão de suma transcendência: os apetitosos seios desenhados por Seixas Peixoto são regionais ou universais?” É claro que se trata de um outro recente livro de Urbano Bettencourt, o autor antropófago de Que Paisagem Apagarás. Queria apenas apontar aqui como o inefável Ernesto Gregório é sumariamente o contrário do narrador-autor de Que Paisagem Apagarás, este que, agora sim, consegue responder pela sátira a certos “leitores” açorianos, tão fictícios como alguns dos livros que nunca leram, sem que esse pormenor os impeça de na realidade emitir ou sussurrar opiniões fortes um pouco por toda a parte. Na secção delirante “Arte e sociedade (segundo Ernesto Gregório)”, será impossível uma leitura do breve texto “Ler jornais é saber mais (do mesmo)” sem uma contínua e viva gargalhada por parte dos que conhecem muito bem estes e outros complexos literários que afligem alguma da nossa classe “culta”, uma vez mais, residente e Tejo adentro. É um sereníssimo ajuste de contas, por assim dizer, com a ignorância de uns e o atrevimento supostamente intelectual de outros. Tenho para mim que Ernesto Gregório (presente também com a sua patética mas deliciosa prosa entre as narrativas primeiras de Que Paisagem Apagarás) vai permanecer na nossa memória como uma outra personagem comicamente emblemática do nosso tempo e lugar. Quase que o vejo numa esquina de Angra ou a passear-se na aqui Avenida com um livreco debaixo do braço, todo convencido das suas certezas.
Quero acima de tudo insistir em como a ficção de Urbano Bettencourt, fundamentada ora em realidades vividas ora imaginadas, ou como poderiam ter sido vividas e sentidas, está construída em narrativas de magnífica ambiguidade e elegância lexical de pontaria certíssima, particularmente na primeira parte do livro. Urbano Bettencourt “viaja” para fora do arquipélago ao encontro ou em busca de toda a mítica das suas outras cidades (um recorrente tema em muita da sua obra), as que ele absorveu da literatura e da arte em geral, num acto de imaginação que nos consegue fazê-lo acompanhar quase como se tratasse de uma inesperada visita a essas outras geografias na sua companhia e tendo os seus escritores de eleição também como cicerones ou meros acompanhantes, por assim dizer. Tanto na prosa como na poesia, Urbano está quase sempre em diálogo com os seus pares internacionais, ou com outros do seu próprio meio e país. Viajamos nestas páginas com Antero em “O comboio inexistente”, encontramos a cantora Bridge Murphy na sua cidade natal de Dublin, onde se faz chamamentos ainda–e naturalmente–a James Joyce, Emanuel Félix e Katherine Vaz, assim sem qualquer surpresa para ninguém no contexto intertextual em que se desenvolve a narrativa “Vozes no céu de Dublin; visitamos na companhia de Álamo Oliveira a mais pequena ilha açoriana em “Crónica de viagem”, e logo de seguida com “Defoe no Corvo”; ainda na mesma sequência narrativa, encontramos um suposto Urbano de Sancho em conversa amena mas hilariante sobre “Las identidades fugaces” com um Juan Carlos Bettencourt das Canárias. Pois. A “identidade” de cada um nestas ficções de Urbano Bettencourt é sempre fluida, de difícil apreensão com a passagem do tempo e as inevitáveis viradas no labirinto estendido vastamente por terra e mar.
Será o tom de voz e a linguagem do narrador que nos oferece uma leitura levemente emotiva enquanto caracterizada, sempre, pela ironia com que se olha o mundo à nossa volta e se avista ao longe outras paragens, o riso contido e empático testemunhando a perpétua comédia humana, mesmo ante a solidão do ilhéu assumido que nunca esquece ou rejeita o companheirismo dos outros nos mais diversas textos e contextos, especialmente os que connosco comungam o inescapável destino do mar, ou a outra nossa condição existencialista num século que abalou o mundo e tudo nos proporcionou, só para nos deixar sempre a meio de uma ponte em direcção a lugar nenhum. Resta-nos nestes contos o que talvez seja a principal beleza e razão da arte: a aproximação possível e o diálogo constante com os outros, para além de línguas e culturas. De “Vozes no céu de Dublin”:
“Nessa noite, Briege Murphy cantava no Howth’s Abbey Center. (…) A sua voz desenhava um fio melódico que se erguia no ar em movimentos oscilantes, acentuados pelo dedilhado sóbrio do violão, e nessa ondulação devo ter pressentido os ritmos marítimos de Saint-John Perse, o fluxo e refluxo das suas marés ve
rbais, dos seus versos desmaiando sobre o corpo de uma ilha da memória. Talvez tenha mesmo tentado perseguir no rasto dessa voz o remoto apelo do mar que secretamente ecoa na poesia de Emanuel Félix. O mesmo mar que traçou para sempre o destino de Enriço Mreule, levando-o a trocar o fechado Mediterrâneo pelo Atlântico infindo, sem saber que este era, afinal, esse outro mar de Cláudio Magris e onde tudo acontece”.
Existimos, nesta e noutras obras do mesmo autor, na solidão rochosa de ilhas atlânticas sentindo, como os outros em toda a parte, o profundo apelo de universos que o mar separa e junta, ilhas & ilhas, rodeadas de mar ou terra por todos os lados. A ideia peregrina de que o “cosmopolitismo” ou “universalismo” é uma necessidade específica de quem vive a, ou na nossa geografia cercada só dirá respeito aos que no fundo nunca conseguiram ultrapassar o seu próprio provincianismo ou são limitados por noções bem pouco informadas acerca do que tem sido a história literária em toda a parte. A vontade de abrir caminhos ao encontro de outros, sem nunca negarmos ou deixarmos de viver fatalmente a nossa própria identidade–tudo o que nos foi legado pela geografia e história a que pertencemos–é o pressuposto essencial que faz da literatura mundial o infindável mosaico de beleza no qual cada escritor, cada artista, interroga permanentemente os deuses e os demónios, os culpados e os inocentes, que criam e norteiam tudo o que queremos dizer por “condição humana”.
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Urbano Bettencourt, Que Paisagem Apagarás, Ponta Delgada, Publiçor Editores, 2010.
(*) Vamberto Freitas: Professor da Universidade dos Açores. Escritor Açoriano. Destacado ensaísta e crítico literário com dezenas de obras publicadas.
Notas:
1. Foi usado como epígrafe num ensaio de Wendy Battin, “Subterranean Maps: A Poet´s Cartography”, inserido no livro organizado por Sharon Bryan, Where We Stand: Women On Literary Tradition, New York/London, W.W. Norton & Company, 1993. Creio que a frase de Alfred Korzybski tem ainda muito mais a ver com a nossa literatura em geral, e muito particularmente com toda a obra de Urbano Bettencourt.
2. Numa recente entrevista ao semanário micaelense Terra Nostra (2 de Julho de 2010) Urbano Bettencourt diria que, “colocado no início do livro, Antero permite estabelecer um fio de continuidade com o livro Antero, de 2006, e amplifica um tópico do último texto de Algumas das Cidades (Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 1995). Noutro passo da mesma entrevista, esclarecia ainda a propósito do presente volume, Que Paisagem Apagarás, contém “Uma diversidade de registos, discursos e práticas—narrativas, textos jornalísticos, colagens e reactualizações de textos, cartas, e aqui entra a participação do Juan Carlos de Sancho com ‘notícias’ e concretizando uma circulação inter-arquipelágica”.
3.Que Paisagem Apagarás, pp. 28-29.
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Crédito Imagem :1. foto – Livraria SolMar
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2.Video: ARTilharia TV (Mario)
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