Foto de Pierluigi Bragaglia
Ponta do Marco Ilha do Corvo
Quando os navegadores portugueses aportaram pela primeira vez à pequena ilha do Corvo, nos Açores, em meados do século XV, encontraram ali uma intrigante estátua de pedra, representando um cavaleiro com traços característicos do norte de África. Este episódio, despercebido a gerações de portugueses, iludido pelos manuais escolares, constitui um ponto de partida fulcral para a grande interrogação: quem descobriu pela primeira vez os Açores ? Sabendo-se das diferenças qualitativas, não só etimológicas, entre “descobrimento”, “descoberta” ou “avistamento”, importa conhecer as diferentes etapas que fizeram da gesta das Descobertas Marítimas do Renascimento mais uma consequência do que antecedência gerada no zero dos saberes e da ignorância total sobre rotas oceânicas e capacidades náuticas epocais.
Quem foram os contrutores da Estátua da Ilha do Corvo?
Esta surpreendente revelação tem sido regularmente refutada pela historiografia mais conservadora, que a tem crismado de “rumor”, “lenda” ou mesmo “fraude”. Mas, existe uma fonte autorizada – de entre outras de diversa natureza – por muitos silenciada ou ignorada ao longo dos séculos. Quem a forneceu à posteridade tem obra e crédito dificilmente questionáveis: Damião de Góis (1502-1574), o grande humanista português do Renascimento, que descreve, com algum detalhe, no capítulo IX da sua Crónica do Príncipe D. João, escrita em 1567, as circunstâncias em que o inesperado monumento – “antigualha mui notável”, assim lhe chama o cronista – foi achado no noroeste da pequena ilha, a que os mareantes chamam “Ilha do Marco”. Quando? “Nos nossos dias”, afirma o cronista régio, na mesma crónica, ou seja, no seu tempo de vida, provavelmente entre os finais do século XV e os inícios de XVI, no decurso do reinado de D.Manuel I e durante as primeiras tentativas de colonização da ilha do Corvo. O que era, então, esse insólito e inesperado “monumento”?
“Uma estátua de pedra posta sobre uma laje, que era um homem em cima de um cavalo em osso, e o homem vestido de uma capa de bedém, sem barrete, com uma mão na crina do cavalo, e o braço direito estendido, e os dedos da mão encolhidos, salvo o dedo segundo, a que os latinos chamam índex, com que apontava contra o poente”.
“Esta imagem, que toda saía maciça da mesma laje, mandou el-rei D. Manuel tirar pelo natural, por um seu criado debuxador, que se chamava Duarte D’armas; e depois que viu o debuxo, mandou um homem engenhoso, natural da cidade do Porto, que andara muito em França e Itália, que fosse a esta ilha, para, com aparelhos que levou, tirar aquela antigualha; o qual quando dela tornou, disse a el-rei que a achara desfeita de uma tormenta, que fizera o inverno passado. Mas a verdade foi que a quebraram por mau azo; e trouxeram pedaços dela, a saber: a cabeça do homem e o braço direito com a mão, e uma perna, e a cabeça do cavalo, e uma mão que estava dobrada, e levantada, e um pedaço de uma perna; o que tudo esteve na guarda-roupa de el-rei alguns dias ( sublinhado nosso ), mas o que depois se fez destas coisas, ou onde puseram, eu não o pude saber”.
O cronista pormenoriza ainda que, “em 1529, o donatário Pêro da Fonseca, das ilhas das Flores e do Corvo, “soube dos moradores que na rocha, abaixo donde estivera a estátua, estavam entalhadas na mesma pedra da rocha uma letras; e por o lugar ser perigoso para se poder ir onde o letreiro está, fez abaixar alguns homens por cordas bem atadas, os quais imprimiram as letras, que ainda a antiguidade de todo não tinha cegas, em cera que para isso levaram (sublinhado nosso); contudo as que trouxeram impressas na cera eram já mui gastas, e quase sem forma, assim que por serem tais, ou porventura por na companhia não haver pessoa que tivesse conhecimento mais que de letras latinas, e este imperfeito, nem um dos que ali se achavam presentes soube dar razão, nem do que as letras diziam, nem ainda puderam conhecer que letras fossem“.
Rumores lendários ou testemunhos factuais?
Quais as testemunhas documentalmente identificadas, sem equívocos, directamente envolvidas no episódio histórico em torno da chamada Estátua Equestre da Ilha do Corvo? Num primeiro grupo podemos incluir: D. Manuel I, 14º rei de Portugal; Duarte Darmas, arquitecto e desenhador da Corte, autor do debuxo do monumento; um mestre pedreiro, natural do Porto, incumbido pelo rei da missão de desmontar e transportar o monumento para Lisboa; Damião de Góis, moço de câmara, cronista régio e guarda-mor da Torre do Tombo; Frutuoso de Góis, guarda-roupa do referido soberano e irmão mais velho do anterior; Pedro da Fonseca, donatário das ilhas das Flores e do Corvo, em 1529. Acrescentemos a estes um segundo grupo de outros presumíveis testemunhos, embora não referenciados nos documentos, como Antão Vaz Teixeira, colono da primeira vaga de ocupação da ilha ( entre 1508 e 1515); os irmãos de apelido Barcelos, depois de 1515, na segunda tentativa de povoamento do Corvo, talvez os mesmos que alertaram Pedro da Fonseca, em 1529, e os que acompanharam o capitão da ilha ao local da laje para copiar a legenda da estátua. Finalmente, um terceiro núcleo de individualidades, mais ou menos coevos dos protagonistas da fase da recuperação da legenda, como sejam o Dr. Gaspar Frutuoso, o primeiro historiador açoriano, contemporâneo de Damião de Góis, ainda que um pouco mais novo que este; Fr. Diogo das Chagas, escritor, que confirma a presença do donatário Pedro da Fonseca, na ilha do Corvo, em 1529; o Dr. Luís da Guarda, corregedor dos Açores entre 1548 e 1552, referenciado por Gaspar Frutuoso como tendo sido uma das pessoas ( “ou outro seu propínquo antecessor”, supõe o historiador) que “pretenderam alcançar o segredo daquela antiguidade”, que, segundo os naturais das ilhas das Flores e do Corvo, ainda de acordo com Gaspar Frutuoso, “estava carcomida, com as faces do rosto e outras partes sumidas, cavadas e quase gastadas, do muito tempo que tudo gaste consome”.
Embora Damião de Góis nos informe, textualmente, “em nossos dias se achou”, não aponta uma data. Sugere, quando muito, que a descoberta dessa “antigualha assaz antiga” – como ele a descreve – é contemporânea dele, do seu tempo. O facto de ter sido D. Manuel I a mandar investigar e a recolher o monumento aumenta essa probabilidade. Mas não é impossível que a informação tenha chegado antes à Corte portuguesa. É nesse conhecimento anterior a D. Manuel e Damião de Góis que se funda a tese da estátua do Corvo como elemento decisivo e impulsionador das explorações portuguesas de longa distância. Se o monumento existiu, de facto, quem poderia tê-lo construído ? Para o cronista régio e arquivista da Torre do Tombo, “esta gente que veio ter a esta ilha e nela deixou esta memória poderia ser da Noruega, Gótica, Suécia ou Islândia”, divergindo assim da hipótese fenícia/cartiginesa defendida pelo seu contemporâneo açoriano Gaspar Frutuoso. Recorde-se que o jovem Damião entrou ao serviço do Rei Venturoso com apenas nove anos de idade, fazendo companhia ao seu irmão mais velho, Frutuoso, guarda-roupa do soberano no Paço da Ribeira. Damião teve mestres de várias disciplinas, como mandava a refinada educação palaciana da época, começando como pagem da lança, servindo o rei à mesa. Passou também a estudar música, para satisfação do rei, um refinado m
elómano, estivesse em despacho ou na sesta. Mais tarde, foi moço de câmara, um lugar de intimidade no protocolo régio, sendo dos poucos que se permitia entrar na régia presença em pelote, que, ao contrário do que se possa pensar, era uma capa forrada de peles. Rezam as crónias que segurava o bacio do penteador, enquanto o irmão Frutuoso penteava D. Manuel I… Temos, pois, reunido um séquito de testemunhos directos, muito próximos, além dos indirectos, cuja concordância confere algum peso qualitativo à presunção da existência de facto do dito monumento, porventura perdidos os seus destroços entre as brumas da memória e das ruínas humanas.
(cont.)