(…cont.)
Amuleto, moedas e inscrições sugerem novas evidências
A este estranho monumento juntaram-se, na marcha dos séculos, novos indícios que sugerem um eventual contacto de outras culturas com as ilhas açorianas antes do ciclo dos Descobrimentos Marítimos Modernos levado a cabo pelas nações ibéricas no dealbar do Renascimento. No litoral da mesma pequena ilha do Corvo foi encontrado, em 1749, nas ruínas de uma casa um não menos perturbador vaso de cerâmica no litoral da ilha do Corvo, repleto de moedas de ouro e de prata cartaginesas e cirenaicas, datadas por numismatas da época, aproximadamente, de entre os anos 340 e 320 a. C.. Através de intermediários em Lisboa, algumas destas moedas chegaram a Madrid e às mãos do padre Enrique Florez, cónego regrante de Santo Agostinho historiador oficial de Fernando VI, de Espanha, e autor insigne da España carpetana, exaustivo tratado numismático relativo às medalhas das colónias, municípios e antigas localidades de Espanha Após demorada análise comparada o padre Florez asseverou tratar-se de duas moedas, de ouro, fenícias do norte de África, da colónia de Cirene, entre o Egipto e a Numídia, e de sete moedas cartaginesas, datando-as de um período entre os anos 340 e 320 antes de Cristo. Mais tarde, a Sociedade de Gotemburgo acolheu sem reservas, no volume I do Göteborgske Wetenskap og Witterhets Samlingar, Memórias da Sociedade de Gotemburgo, um artigo assinado por Johann Franz Podolyn, aristocrata sueco, nascido em Lisboa e membro daquela agremiação, que se referiu, pela primeira vez, ao exame do espólio monetário do Corvo feito pelo padre Florez relativo a esse ano de 1778, numa notícia intitulada “Algumas anotações sobre as viagens dos antigos, derivadas de várias moedas cartaginesas e cirenaicas que foram encontradas em 1749 numa das ilhas dos Açores“.
É curioso acrecentar que o escritor francês François René Chateaubriand aceitava como provável que os Açores tivessem sido conhecidos dos Cartagineses. Tal afirmação está contida no volume VI das Memoires d’Outre Tombe. Talvez poucos saibam que o autor do Génio do Cristianismo passou algum tempo nos Açores, por onde passou após ter deixado a pátria, em 1791, com destino à América, para escapar aos furores da Revolução Francesa. Na sua rota para o exílio passou pela ilha Graciosa, nos Açores, onde esteve em risco de naufragar. Chateaubriand acabou por ser recebido pelos frades do convento franciscano de São Boaventura, em Santa Cruz das Flores, O mais curioso foi que, durante a sua estadia, Chateaubriand foi informado pelos frades do convento de Santa Cruz da descoberta das moedas cartaginesas e cirenaicas encontradas nas ruínas de uma casa, na ilha do Corvo, em 1749. Numa passagem do seu livro Voyage en Amérique, Chateaubriand diz ter recolhido ali também a tradição viva, entre os naturais da ilha das Flores, da existência da estátua equestre, mostrando o Ocidente com o dedo, erguida na ponta rochosa da ilha do Corvo.
As descobertas fabulosas não se ficaram por aqui, porquanto, viajantes estrangeiros, como o francês André Thévet, no decurso do século XVI, alegaram ter encontrado inscrições supostamente fenícias de Canaã (Palestina), numa gruta da ilha de S. Miguel. Por fim, em 1976, nesta mesma ilha, haveria de ser desenterrado um amuleto com inscrições de uma escrita fenícia tardia, entre os séculos VII e IX da era cristã, possivelmente usada no norte de África por povos descendentes dos cartagineses. Sob investigação da Sociedade de Epigrafia Americana o amuleto conteria o seguinte lema: “De tormentas isto protege. Não há Deus senão Deus. Para proteger de navegar fora de rumo“. Quem quer que fosse o seu possuidor, supomo-lo atrevido o bastante na sua empresa marítima.
Mas não é tudo: dando razão ao provérbio – “não há duas sem três” – investigadores açorianos descobriram em 1998 aparentes inscrições ideográficas numa pedra, na costa da freguesia das Quatro Ribeiras, ilha Terceira. Entretanto, o achado esteve em riscos de se perder na insconstância das correntes marítimas locais, o que gerou alguma preocupação e acabou por mobilizar a Direcção Regional de Cultura dos Açores para a salvaguarda do petroglifo. Assim, em 2006, foi solicitada a colaboração da Força Aérea Portuguesa que enviou um helicóptero para o resgate da pedra das Quatro Ribeiras. Um dos elementos da FAP que integrou a missão confidenciou ao historiador Joaquim Fernandes ter-lhes sido recomendado manter sigilo sobre o assunto “porque suspeitam que os escritos sejam anteriores à nossa chegada aos Açores, e isso comprometia a História admitida. Parece que a escrita é Fenicia ou algo assim…”.
Finalmente, a pedra foi removida em 2006 para as instalações da DRC, em Angra do Heróismo, onde permanece aguardando por uma investigação devidamente planeada e rigorosa. De momento, segundo o parecer prudente do assiriologista e epigrafista Herbert Sauren, da Universidade de Lovaina, que tem estudado o achado, as incisões na rocha lávica “poderão ser obra humana” e equivaleriam a, pelo menos, três letras de um alfabeto semita, possivelmente fenício, púnico ou uma língua do Sudoeste. O mesmo especialista conjectura que a pedra, posta na praia, visível do mar a certa distância, poderia constituir um aviso para outros nautas. Na sua opinião, “se podemos aceitar a interpretação como verdadeira, a ilha Terceira já era visitada a partir do continente Europeu, pelo menos no séc. II, a.C. Não sabemos se os navegadores infelizes voltaram, e se os nautas das outras naus da frota encontraram a mensagem”.
Quem navegou no Atlântico antes dos descobridors ibéricos ?
Como encarar, assim, toda uma longa herança de pistas que indiciam uma abordagem do arquipélago da chamada “Macaronésia” atlântica, por outros povos marítimos, mediterrânicos e norte-africanos, bem antes do ciclo das descobertas portuguesas no século XV?
Poderão todas estas pistas colocar em risco as certezas adquiridas acerca da exclusiva prioridade e originalidade das navegações e descobertas de portugueses e espanhóis no Atlântico e na América ? Ou em alternativa, como tentou sustentar o açoriano Ernesto do Canto, não passaria toda esta trama de um “pérfido rumor”, posto a circular pelo ressentimento dos portugueses, com o intuito de diminuir a façanha de Colombo em ter aportado ao “Novo Mundo”?
Que fundamentos poderão ser invocados para uma plausível visita de povos da Antiguidade, dos primordiais “Senhores dos Mares” – mesmo que involuntariamente – às ilhas ocidentais do “grande oceano”, com ou sem ocupação sistemática das mesmas, muitos séculos antes do ciclo europeu das Descobertas Marítimas liderado pelos dois países ibéricos?
E se essa prévia e remota experiência marítima, suficientemente documentada no caso dos fenícios, reputados “povos do mar”, refinada numa longa duração, se cruzasse com a insistente tese de um conhecimento de terras americanas em épocas bem anteriores à sua descoberta oficial por Cristóvão Colombo?
Perguntas que o tempo longo da História não fez desvanecer, mas que torna difícil a percepção do que, por exemplo, um milénio representa em termos de duração e extensão “física”, de milhares de eventos e possibilidades que escapam à nossa consciência, limitada e contemporânea.
Não são de desprezar as fontes históricas que sustentam as capacidades técnicas, a vários níveis, dos antigos “povos d
o mar”, como os fenícios, do ramo semita dos Cananeus e os seus sucessores de Cartago. O nome histórico desta cultura – mais do que um país ou lugar precisos – foi designado pelos Gregos e não pelos próprios Fenícios. O nome Phoenicia deriva da palavra grega phoenix, significando neste caso uma cor vermelho escuro ou púrpura. O certo é que os Fenícios impunham já a sua lei nos mares por volta do ano 1200 a.C., inventaram a quilha, tornaram os seus navios aerodinâmicos, instalaram cobertas e melhoraram as velas. Os seus navios tinham entre 80 a 100 pés de comprimento e usavam uma única vela quadrada além dos remos. Antes do século VI a.C. construíram navios que podiam transportar entre 50 a 100 toneladas, comparáveis em tamanho e tonelagem às caravelas portuguesas do século XV da era cristã. Podiam atingir uma média de 100 milhas em 24 horas.
O que dizem a documentos e a pesquisa histórica actual sobre estas alegadas capacidades náuticas? Alfredo Martin, das Universidades Complutense, de Madrid, e de Harvard, estudou o famoso périplo de Hannon, em 485 antes de Cristo, com sessenta navios de Cartago, calculando que teria percorrido a costa africana até Cabo Verde. O especialista espanhol pensa essa viagem de Hannon teria sido projectada no contexto da rivalidade entre Cádiz e Cartago, nos séculos IV-III a.C.. Existem hoje evidências arqueológicas, por exemplo, encontradas em vários pontos da geografia equatorial africana, da Costa do Marfim à foz do rio Congo.
Por outro lado, especialistas em náutica e cartografia recordam a importância fulcral do sistema de ventos e correntes, na parte central do Atlântico Norte, nas eventuais viagens precoces a terras americanas. O caso do piloto andaluz Alonso Sánchez, de Huelva, eventualmente arrastado até às praias americanas em 1484 ou 1485, poderia ser paradigmático deste mecanismo propulsor “anti-ciclónico” no centro atlântico. Historiadores espanhóis, que testemunharam os passos de Fernando Cortez e demais “conquistadores”, aludem também a essas possíveis visitas de povos da antiguidade às costas americanas antes da chegada de Colombo às Antilhas. É o caso de Esteban de Garibay y Zamalloa, no século XVI, profundo conhecedor do grego e do latim, bibliotecário de Filipe II, de Espanha e que, no seu Compêndio Historial, afirma que “mercadores cartagineses desejavam descobrir novas terras no Oceano do Poente e navegaram tanto cerca do ano 392 (a.C.) que encontraram uma grande ilha que se suspeita ser a que agora dizem Espanhola que doutra maneira chamam de San Domingo e que começaram a povoar nela; mas Cartago não quis ocupar-se em tão longa viagem, antes castigou os descobridores, mandando-se graves penas para que ninguém falasse naquela viagem“. Esta reacção sugere que a tão propalada “política de segredo” havia já sido apanágio dos navegadores cartagineses, os quais, como as posteriores talassocracias ibéricas, apostavam na manutenção do segredo das suas descobertas territoriais, como meio de proteger os seus potenciais recursos económicos.
As ilhas atlânticas na cartografia antiga e medieval
Não é raro ao historiador mais diligente topar com documentos ignorados na sossegada poeira dos arquivos, e que lançam novas interpelações à volta de problemas em aberto, nos domínios da História, da Arqueologia, da Literatura.
As hipóteses levantadas por uma cartografia medieval, ainda que imprecisa, fabulosa, nas suas representações, mas insistente nos alvos geográficos essenciais, não têm deixado de aguçar a curiosidade dos historiadores menos conformistas. O historiador Pedro de Azevedo lembra que, na Idade Média, o número de ilhas do Atlântico, mais ou menos fantásticas, foi aumentando, definindo-se apenas alguns dos seus nomes: é o caso da Antília, Brasil ou Sete Cidades.
Abundam os exemplos de uma vasta e longínqua tradição literária que nos remete para a existência de viagens heróicas, epopeias inauditas em demanda de ilhas imaginárias no Atlântico: refúgios de reis e reinados em crise, emergirão delas, um dia, envoltos em bruma e nevoeiro os Sebastiões, saudosos do fausto e do poder perdidos, símbolos de uma redenção messiânica sempre procurada.
Por exemplo, um códice da Livraria do Mosteiro de Alcobaça, com cópia em letra do século XIV, fala-nos de uma viagem à ilha Solistonis, por um tal Trezenzonio, desde a Corunha até ao mar distante, onde acabou por achar uma ilha aprazível, oculta dos estranhos por espessas nuvens. Uma região encantada por onde o galego andou durante sete anos sem tristeza, nem fome nem perigos. Apenas um exemplo de um longo colecta de narrativas, que evocam a existência destas ilhas perdidas no imenso Atlântico, ora reais, ora irreais, palpáveis ou logo invisíveis, flutuando como em mar encapelado nos mapas portulanos e na imaginação dos marinheiros.
Lembre-se o facto de Aristótoles ter anotado na obra De Mirabiluis auscultationibus que esta mesma ilha teria sido conhecida dos Cartagineses, os quais haviam mesmo pensado usá-la como reduto estratégico no caso de serem expulsos da sua pátria, no Mediterrâneo. A ideia da ilha como refúgio está também plasmada no tema de uma suposta ilha ao norte da Ilha Terceira, referida pelo cronista Francisco de Sousa no seu Tratado das ilhas novas, publicado em 1570, onde fala numa grande ilha habitada que nela foram ter gente da nação portuguesa no tempo da perdição das Espanhas, que há trezentos e tantos anos governava El Rei Rodrigo.
Um outro autor clássico, Diodoro da Sicília, não terá exagerado quando no ano 100. a.C escreveu que “longe da costa africana existe uma ilha de considrável tamanho que os Fenícios descobriram acidentalmente após terem instalado muitas colónias em África“.
Citando a ilha de S. Miguel, o alemão Sophus Ruge considerou que podemos remontar este topónimo até às lendas eclesiásticas medievais, especialmente a designação das “Sete Cidades”, considerada um asilo no Oceano, impossível de alcançar. Por seu turno, o francês Paul Gaffarel sugeriu, no século XIX, que a ilha de S. Miguel fosse essa ilha mítica, baseando-se nas alusões aos frequentes tremores de terra, por certo capazes de destruir os lugares habitados, mas deixando, por outro lado, pistas das suas ruínas. Será a nossa familiar e bela Lagoa das Sete Cidades uma vaga reminiscência dessa associação?
(cont…)