O traço de interatividade da presença portuguesa no Oriente tem transformado não só Portugal, como talvez os povos com quem os portugueses ali dialogam há muitos séculos. Opinar sobre a qualidade dessas relações não é o objetivo deste texto. É bem verdade que tais trocas também podem ser vistas à luz de realidades como: a guerra, a colonização, a conversão ao catolicismo, ou o comércio de pessoas e de bens. Aqui, quero tão somente debruçar-me sobre o que sedimentou dessas relações culturais e pessoais para tentar entender uma certa especificidade da cultura portuguesa com raízes em cenários luso-asiáticos e a importância do futuro dessas relações. Assim, a minha abordagem mede-se pelo interesse em compreender o sentir-se emocionalmente curioso perante o mundo, uma ideia constante nos textos portugueses que narram o diálogo luso-asiático.
Os textos que abordo refletem a ideia de enredamento necessária ao diálogo humano, o que fica das relações hifenadas lusas, e neste contexto, asiáticas. As propostas das diferentes leituras reelaboram os conceitos de inferno e de paraíso, sendo que o signo linguístico “inferno” é o mais questionado na sua componente significativa. O inferno linguístico suscita, afinal, um exercício de reflexão para que o leitor descubra outros infernos mais profundos. Então, o inferno nem sempre é espaço de perdição, é-o também de libertação, de busca em direção ao futuro, de criatividade e de vida. As entidades que não o assumem ficam a viver numa espécie de purgatório, onde o presente é vivido por referência a um passado glorioso, sempre melhor do que o tempo do agora, sem perspetiva de futuro. Sendo que passado e futuro são fundamentais para a recriação de um Oriente presente da responsabilidade de autores a ocidente.
O livro Um Estranho em Goa do escritor angolano José Eduardo Agualusa revela-se uma tentativa de dizer a relação luso-asiática já em 2000, num tempo em que o Ocidente se centra nesse Oriente inquietante, onde se desenvolvem projetos políticos, económicos e culturais responsáveis pela alteração da ordem mundial.
A escolha do sujeito interlocutor para um tal diálogo lusófono parece ser acertada. Na medida em que se trata de uma personalidade autoral pós-colonial, a observação do “outro” é um pretexto para a reflexão acerca do percurso do seu próprio país; no fundo, trata-se do projeto literário de uma voz consciente dos movimentos da história colonial. Nesta obra, a par da escrita artística, faz-se um retrato do passado luso-asiático e do presente que persiste, mesmo após quarenta e poucos anos da integração de Goa na Índia.
O narrador-autor dá início a um percurso tentativo e angustiante de compreensão daquela realidade. O título escolhido, Um Estranho em Goa, tem no nome-adjetivo “estranho” a sua pista encoberta. Um estranho pode ser alguém que penetra num espaço e que não é reconhecido pelos que aí estão como sendo um local, mas sentir-se estranho é também o estado de espírito desse alguém que circula num espaço que não é o seu, com o qual pode até ter afinidades, ou não; e que se sente exterior a esse lugar. Um estranho pode então ser um estrangeiro do ponto de vista nacional ou cultural, ou pode ser um meio estrangeiro, quaisquer que que sejam as combinações possíveis. E o nosso narrador sente-se descontextualizado ao longo do seu percurso narrativo. Inicialmente incomodado, chega mesmo a vivenciar momentos de angústia. A natureza circundante parece ser o elemento catalizador do mal estar. Na verdade, o clima não recebe bem os que visitam aquela região, pelo que o narrador-autor — um angolano e ocidental — enceta a aventura asiática sempre perseguido pela natureza; um certo clima, uma certa flora e uma certa fauna.
Ficamos com a certeza de que não é fácil este diálogo. E não o é pela complexidade dos interlocutores, mas também pelas dificuldades inerentes ao espaço de encontro. O perfil do narrador de identidade plural — entre África, Europa e América do Sul — acaba por justificar o delírio de uma escrita em recortes que se atropelam por via da memória sobressaltada, ou que se justapõem por uma necessidade de ressuscitar espaços anteriormente escritos noutras obras; da sua autoria e não só. Este estranho acaba por perceber o quão maléfica é para ele aquela região e que não é bem vindo ali. Talvez seja corresponsável por essa má receção, na medida em que se tentou pela construção de dois textos paralelos; um da sua pena e o outro, pela evocação do diabo e de ideias demoníacas, através das epígrafes que iniciam cada capítulo. Neste percurso de conhecimento de si mesmo, o narrador ressuscita textos que reforçam a relação dialétia da vida entre bem e mal, noite e dia, sagrado e profano.
Do exterior, é possível caminhar na direção do espaço interior de um narrador atraído por personagens ou realidades proibidas, tais como: Lili, Lailah, K, Plácido Domingo, os livros, a santidade de São Francisco Xavier, a serpente. Por outro lado, graças a essa opção desafiadora, este narrador no final poder-se-á libertar, voando até ao infinito, onde encontra uma natureza que pela primeira vez se alegra, porque é a do retorno a uma certa Europa: “E então sem aviso, irrompeu no meio das nuvens o brusco esplendor dos Alpes. Uma ilha de gelo, no meio de um infinito mar de espuma, que o sol da madrugada tingia de vermelho […] Encostei a cabeça à janela e chorei” (165). E quando já se encontrar bem no alto, abafado pelo ruído do motor do avião — de uma forma sugerida pelo nome e não afirmada pelo verbo — acabará por fazer a interligação das epígrafes com a enumeração de nomes para o demónio, num processo de reconstrução de um demónio linguístico tão presente na Língua Portuguesa.
A prosa de Agualusa é uma escrita plástica no que concerne a descrição da natureza e a interação do narrador-autor com o meio ambiente. As frases iniciais do primeiro capítulo transmitem-nos a textura áspera, através da sequência aliterativa em [r] e [R]: “As gralhas, lá fora, gralham umas com as outras. Arranham a noite numa algazarra áspera” (11). Assim traduz o incómodo e desconforto do narrador, em sintonia com a tensão de uma noite que, apesar de estrelada, não clarifica a alma. E a angústia cresce ao ponto de ele se questionar acerca da razão da sua estada ali. Finalmente, a confissão lúcida: “Escrevo porque quero saber o fim” (13). Essa sua curiosidade vai constituir-se como fio condutor das etapas narrativas, na interação deste protagonista da escrita com as personagens que faz entrar em cena. A sua vocação para o conhecimento quase o faz cair no esquema de tráfico de órgãos, ao concordar em comprar o coração de São Francisco Xavier; situação inverosímil que revela uma sua faceta de ingénuo. É como se a ingenuidade constituisse uma condição essencial para o acontecer de uma epifania, mesmo que impossível.
A intenção plástica persiste ao longo das descrições dos ambientes incomodativos. A noite escura colhe o nosso narrador, aterrorizando-o, ferindo-o e vedando-lhe o prazer da encenação inicial do Festival de Diwali: “Senti-me naquele momento na pele de um mergulhador aprisionado numa súbita noite de sépia” (107), ou ainda, “Os sons no meio das trevas, sobressaíam como se tivessem arestas” (108); e logo depois, “Podia sentir que aquilo me cercava nas trevas e que era múltiplo, plural; podia sentir no rosto o seu hálito azedo. O calor da sua cólera” (108).
A noite de Agualusa partilha com a do Indian Nocturne de Antonio Tabucchi o mesmo cenário e a mesma necessidade de procura de algo ou de alguém; no fundo, a procura de si mesmo. Tabucchi, de uma geração anterior à de Agualusa, cria um protag
onista-autor numa viagem de busca por um tal Xavier Janata Pinto que acaba por se identificar com o narrador no final da obra, num desvendar tão característico dos finais narrativos do universo tabucchiano. Ao protagonista é atribuido um nome de pássaro — Roux, Rouxinol, Nightinghale — pássaro traduzido. Pássaro simbólico na poesia europeia, o rouxinol é a ave inspiradora da poesia, pelo seu canto sedutor. Este rouxinol inspirado, à procura do seu projecto literário nesse Oriente dos mil e um encontros plurais, decide enveredar por dois passados coloniais europeus tão fortes na definição da Índia e do Ocidente europeu. Na Bombaim, cedida aos ingleses por Portugal, encontra o saudosismo britânico. Em Goa, convive com o passado histórico luso. E nisto o texto de Tabucchi difere do de Agualusa, é o texto de um estrangeiro na Índia, não o de um estranho; confessa-o o narrador Tacbucchi:
‘No,’ I answered, ‘this is the first time I’ve been here. I still haven’t really taken in where I am.’ (40)
‘Very few [books],’ I answered. ‘At the moment I’m reading one called A Travel Survival Kit. It’s turning out to be quite useful.’ (40)
No entanto, a escrita dos ambientes geográficos e humanos do nocturno de Tabucchi apresenta traços semelhantes aos da prosa de Agualusa. A inquietação curiosa do protagonista de Tabucchi orienta-o na direção da noite, onde começa por descobrir uma natureza agressiva em relação aos seres humanos, uma natureza que domina os homens ou quase o consegue. Quer estejamos face a lugares infestados de doença e Sujidade, quer sigamos o protagonista na sua permanência no hotel de luxo Taj Mahal, a ideia é a mesma. O hospital de Bombaim surge como um local de aspeto melancólico, invadido por uma natureza agressiva e auto-suficiente, porque larvar: “The floor was black with cockroaches which burst under our shoes (…). ‘We kill them off,’ said the doctor, ‘but after a month they’re back. The walls are impregnated with larvae, you’d have to knock down the hospital’” (16-17).
O hotel de tradições britânicas apresenta-se como uma fortaleza ilhada que resiste à natureza. Defende-se contra o ciclo da vida representado pelos corvos que debicam os cadáveres humanos, assim como os ratos, os insectos e a má qualidade dos sistemas de saneamento básico, porque “the Taj is not a hotel: with it’s eight hundred rooms it is a city within a city!” (22).
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Irene de Amaral, University of Masscachusetts Dartmouth