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Na peregrinação asiática as personagens lusas europeias reagem ao meio onde circulam. Adaptam-se às condições de vida, revelando-se seres flexíveis e vocacionados para uma vida em trânsito constante. Neste sentido precisam de desenvolver a troca da palavra oral e escrita, pelo que a necessidade de entrega de uma carta pode constituir motivo para uma viagem e mais uma aventura nem sempre feliz. Então, recorrem a Deus, num movimento discursivo que lhes aquieta a alma ou a consciência.
Muitos séculos depois, Maria Ondina Braga oferece-nos uma outra experiência luso-asiática na sua escrita algo intimista. A peregrinação desta mulher como opção de vida, embora lhe tenha permitido recolher vasta matéria de escrita, também resultou de uma sofrida muita instabilidade. Com um toque autobiográfico, a autora afirma em Passagem do Cabo: “Eu, onde quer que chegue, aí o conflito e a falência. Que azar! Nestas minhas lamentações, eu, e de repente a lembrança de uma história, uma fábula a respeito de uma certa ave cuja sorte, passe a expressão, semelhante à minha” (84).
Esta escrita em que os verbos de ação dão lugar aos nomes e aos adjetivos de emoção dispostos num discurso entrecortado sujeita-se ao ritmo da memória e do discurso interno. Aqui não se faz sentir a necessidade de diálogo como forma de dar vida à escrita. A dinâmica está toda no jorro de solidão que quase não cabe nos ambientes descritos. Os seus espaços – o do “eu” ou o exterior – assumem uma interioridade muito ocupada, atulhada de uma carga emotiva ou de objectos empilhados, escondidos como segredos em espaços delimitados. O “eu” encontra o seu equivalente nos quartos em Nocturno em Macau, onde as professoras colecionam objetos de vida de uma forma mais ou menos organizada; as mezinhas, a comida, o enxoval, ou as cartas misteriosas.
Se a escrita se fixa no ambiente exterior, são frequentes os lugares de convívio social, como a casa de chá ou ainda o aeroporto, descrito no texto “Goa: a hora do adeus” de Passagem do Cabo. Aí a professora de vinte e nove anos recém-chegada sente-se tragada pela confusão resultante da evacuação na altura da integração dos territórios portugueses na Índia. Daí, o afirmar-se como uma ave sem pouso, “Longe do que se chama pessoa prevista, […], quanto mais precavida” (86). Com uma honestidade muito desprotegida confessa a fé no seu projeto de ensino ao serviço da Língua Portuguesa e a mágoa pelo fim de um ciclo que se iniciara no século XV: “Comovi-me pelo casal na dor do apartamento, pelas mulheres e crianças goesas tão tristes e desorientadas, mas em especial por essa Índia que me acostumara a amar. A Índia da nossa audácia, a Índia da nossa epopeia, a Índia dos nossos sonhos” (89).
A instabilidade da narradora parece que a desperta para a atenção aos espaços onde se movimenta, à procura de si mesma. E nessa vida instável de professora ambulante, a sorte da protagonista de “Goa: a hora do adeus”assemelha-se à da ave da fábula, perseguida pelos predadores ou mesmo pela flora que se destrói. É então que se cifram os ganhos: o conhecimento e a persistência, sobre a derrota.
No texto “Verão em Macau” o leitor é confrontado com um aparente apontamento de viagem em que intencionalmente se sobrepõem elementos de uma reação emocional e detalhes da geografia, da paisagem e dos costumes. Em termos generalistas, é uma estação seca e morta que é apresentada aqui, o Verão. Para logo se hiperbolizar o seu efeito em terras do Oriente, onde o excesso de população e a sujidade fazem com que a narradora sinta que “em sítios assim, e mal-grado a chuva, a quadra mais acabrunhante que já conhec[eu], o Verão” (119). E logo depois, o pretexto para desenvolver o sentido de recusa do Verão presente ressalta do apontamento contrastivo da natureza e do homem angolano, onde a mesma estação significa fertilidade e fartura (119).
O título parecera apontar para uma descrição do Verão em Macau, mas ao longo da leitura verificamos que o móbil da escrita é o conhecimento da experiência humana naquele território. Em contiguidade com a descrição do exterior decadente a professora apercebe-se de formas de viver que lhe são estranhas: “Macau, Hongkong, cidades sem campo, de ruas imundas e aquela decrepitude, mais perto da morte que da vida, o Verão por cá. Uma forma, digamos de definhamento. Um fim. E não apenas no céu esgazeado e nas águas roxas do rio, mas também, e pior ainda, na passividade do povo” (120).
As ruas decadentes e sujas – descritas com pormenores pictóricos em tons arroxeados e esgazeadaos – agudizam o pressentimento de que a população se encontra sob o efeito do sentimento de desesperança , disfarçado pela ilusão do jogo. É uma paisagem humanizada que presentifica um inferno morno, por isso a exclamação “Abrenúncio” e a sua tradução em mandarim “Zou kai!,” como que a afastar a energia negativa que afunda, tragando o espírito das pessoas.
O tempo da narrativa dissolve-se na opção estilística da eliminação dos verbos em orações intercaladas: “Segue-se que eu, o meu primeiro Verão aqui, para mim Macau quase que um cemitério.” E a iniciar o parágrafo seguinte, os verbos de ação que recuperam a presença do tempo: “A chuva veio, todavia, a meio da tarde. Veio breve e brusca e encharcou a cidade que entretanto secou.” (120)
Assim, se, por um lado a ausência do verbo e o abuso do nome e do adjetivo nomeiam de uma forma estática o Oriente de Maria Ondina, por outro a narradora-autora não desiste do verbo para contar a vida nestes espaços orientais da sua opção. A chuva aparece como elemento gerador de movimento, vida que é experimentada de forma muito diferente pelas pessoas e pela natureza. O ambiente humano desperta, mas para uma vida de pobreza e de jogo. Enquanto o ambiente urbano se ilude entre as perdas e os ganhos, é na natureza que o esplendor se consuma. E a noite é o oposto do inferno do quarto de professora provisória. Num deambular pela cidade após as aulas noturnas a protagonista é recebida por uma flora e uma fauna mágicas. São as cigarras prestes a iniciarem o seu canto, os lagartos estendidos no pátio, é a fartura de frutos da jaqueira, “Derreada de frutos pesados e obesos como abóboras de bronze” (120). Então, o milagre acontece através do pré-anúncio de um novo tipo de exploradores, estes do vento: “quem aqui para guardar o orgulho e o coração da sua raça? Quem, a não ser eles, para um dia recordar estes rigores? Para, um dia atrás do outro, os esquecer?” (121).
Assim, em Maria Ondina Braga a crença num futuro diferente do passado acompanha o balanço das sucessivas passagens pela Ásia. É, pois, nos fios de nylon que reside o desafio às estrelas distantes ou à sociedade de riqueza desigualmente destribuída. Afinal, um sentir muito próximo do pensamento expresso por de Tabucchi. Isto é, o protagonista de Indian Nocturne também acreditara na possibilidade de futuro, já que nem tudo desapareceu (60), conforme o refere ao português Afonso de Albuquerque na Índia portuguesa após ter visitado o inferno de uma outra Índia.
Maria Ondina Braga, Antonio Tabucchi e José Eduardo Agualusa colocam as suas narrativas em tempos e espaços de fronteira, pelo que propõem repensar as experiências coloniais para se poder retomar a ligação luso-asiático. Num momento em que o diálogo interrompido pelos processos de descolonização parece ainda estar por acontecer, as propostas destes autores apontam alguns ajustes, como sejam: a substituição da caravela pelo pássaro e a navegação marítima pela comunicação em rede. Este novo paradigma permite chamar à cena personagens com pontos de vista discordantes. Talvez a solução possa residir na coexistência diferida do papagaio de papel de Plácido Domingo em Agualusa e do papagaio dos meninos de “olhos de casa-de-botão e ma
rrafa preta e espetada” (121) de Maria Ondina Braga.
Obras Citadas
Agualusa, José Eduardo. Um Estranho em Goa. Lisboa: José Eduardo Agualusa e Edições Cotovia, Lda., 2000. Print
Braga, Maria Ondina. Passagem do Cabo. Lisboa: Caminho, 1994. Print
Camões, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa: Círculo de Leitores, 1984. Print
Pinto, Fernam Mendez. Peregrinacam. Lisboa, 1614. Print
Tabucchi, Antonio. Indian Nocturne, trad. Tim Parks. London: Chatto & Windus Ltd., 1988. Print
(Texto inédito)
Irene de Amaral University of Massachusetts Dartmouth