Vem de Platão a ideia de que uma vida não examinada não merece ser vivida. Apesar da ancestralidade desta afirmação, é na época contemporânea que encontramos o maior e mais diversificado número de exames conhecendo difusão pública. Escrever e publicar o relato da própria vida já não é, como durante muito tempo foi, um privilégio reservado aos membros das classes dominantes. A popularidade da vaga intimista nas publicações contemporâneas estendeu a tradição da escrita confessional a todo o tipo de vozes e assinaturas, suscitando um conjunto rico de reflexões sobre as motivações, as características e o lugar das memórias no interior da escrita literária.
No fio da vida integra este volumoso caudal de escritas do eu. No entanto, a presente edição distingue-se de muitas outras por várias razões. Em primeiro lugar, tratando-se da reescrita de uma vida examinada e publicada em inglês há mais de 12 anos, o livro convida a uma análise ao processo de tradução. O exame desta vida conheceu dois tempos, dois sistemas linguísticos, duas capas, dois títulos. Na versão inglesa, as páginas desta autobiografia intitulam-se Hard Knocks; na versão portuguesa, passaram para No fio da vida. O tradutor/ autotradutor/ autor/ autobiógrafo/ autobiografado não foi fiel ao título original. Quem assistiu à conferência de abertura do II Colóquio de Tradução e Cultura, que decorreu na Universidade dos Açores, ouviu-o dizer que, enquanto tradutor de si mesmo não procura ser fiel, mas melhorar o texto de partida. A diferença semântica dos títulos comprova isso. A fidelidade tê-lo-ia guiado para a escolha de Duras Pancadas, Embates Severos, ou algo no género como título. Mas não. O autotradutor optou por substituir a dureza das pancadas que encontramos no título inglês por um sentido de continuidade no título português. Como que a demonstrar a consciência da mudança de sentido nesta reescrita da vida, a nota de autor que precede a narrativa explica o que mudou: «Talvez porque o fio da vida se me encurta e eu quereria, através da minha história, que mais não seja, regressar ao lar». A publicação da autobiografia na língua materna é, por conseguinte, não só um novo exame ao balanço da vida, mas um retorno à terra de origem.
Porque um livro é também um objeto físico constituído por materiais que nos estimulam do ponto de vista táctil e visual, justifica-se incluir um apontamento sobre as capas das duas edições. Hard Knocks apresentou-se ao público anglófono com uma capa predominantemente vermelha e azul – duas cores icónicas da cultura americana; na edição portuguesa predomina o azul cinzento escuro, recordando a atmosfera mais nublada das ilhas. Na versão inglesa, a meio da capa, encontramos num plano mais próximo, uma linha de arranha-céus e a ilha ao longe; na versão portuguesa, não há arranha-céus, apenas mar unido ao céu, e a inevitável ilha. Além disso, somos encaminhados para a justaposição de dois conceitos: o de fio e o de espelho. O primeiro, desenhando a progressão da vida no tempo, é também a linha que revela os bordos de um espelho partido – uma imagem feliz como representação da ideia de autobiografia entendida na dupla aceção da linha que o tempo teceu e do olhar que se observa ao espelho. Nada melhor do que um espelho quebrado para termos a noção de que a imagem refletida não é a coisa real, mas uma réplica. Só um espelho partido com as suas imagens distorcidas nos obriga a reconstituir os fragmentos das recordações. Expressão visual apropriada ao conteúdo desta obra, a capa portuguesa caracteriza-se ainda pelo predomínio de tons escuros e de motivos insulares, o que nos prepara para duas conclusões interligadas: a vida de Francisco Cota Fagundes foi profundamente influenciada pelo facto de ele ter nascido nos Açores e não foi um feixe contínuo de luz.
Habituámo-nos a sobrevalorizar a luz em detrimento das sombras, provavelmente guiados pela herança iluminista de crença no poder da razão, mas foram vários os autores e momentos da nossa história comum e pessoal que nos deixaram alertas sucessivos para os perigos de nos deixarmos cegar pelas luzes. É muitas vezes na sombra que descobrimos a iluminação mais delicada e necessária à visão do que realmente importa. Um dos últimos autores a referir este binómio foi Giorgio Agamben, que num pequeno livro intitulado O que é o contemporâneo? propõe como resposta à pergunta do título o seguinte: «o contemporâneo é aquele que fixa o olhar no seu tempo para aí descortinar não as luzes mas a obscuridade.» Eis uma aceção de contemporâneo que elege como elemento definidor do conceito não o atual, mas o inatual. O contemporâneo mantém uma distância anacrónica com o presente histórico e com a cultura dominante, não se deixando cegar pelas luzes do seu tempo.
Inatual é também a autobiografia. Na autobiografia, o eu que escreve move-se num presente onde não vive, rememora e escreve como se fosse presente um tempo que já passou. A autobiografia afasta-se, portanto, do atual, procurando chegar ao ponto mais fundo do eu, que, como bem sabemos, é sempre o lugar mais sombrio. Também por isso, uma capa mais escura se adequa melhor ao conteúdo deste livro, onde se narram «peripécias amargas», nas palavras do autor – as peripécias de um imigrante nos Estados Unidos da América. Esta especificidade narrativa remete o livro para um tipo particular de autobiografia, que é a autobiografia de imigrante.
Apesar de haver relatos autobiográficos desta natureza anteriores ao século XX, a descrição deste género autobiográfico aparece pela primeira vez abordado de forma teórica já bem dentro desse século, nomeadamente num livro de William Boelhower, publicado em 1982, com o título Immigrant Autobiography in the United States. O autor define este tipo de textos como obedecendo a uma estrutura composta por quatro momentos:
1. A narrativa inicia-se com a antecipação de um sonho que se deseja ver concretizado – o sonho de emigrar;
2. Em seguida, o/a protagonista viaja do Velho Mundo para o Novo Mundo e envolve-se numa série de contactos e de experiências que lhe proporcionam novidades e contrastes com o seu lugar e cultura de origem;
3. Segue-se um processo de transformação, durante o qual o/a protagonista se vai progressivamente americanizando e vendo obrigado/a a confrontar as expetativas utópicas que havia alimentado com os elementos efetivos da realidade americana;
4. Finalmente, a autobiografia de imigrante procura harmonizar dois sistemas culturais diferentes – o do presente e o da memória – num único modelo que ajude o/a protagonista a conciliar as forças contraditórias da sua vida.
Estas quatro linhas macrotextuais não estão sempre presentes da mesma maneira em todas as autobiografias de imigrantes. É natural que existam especificidades microtextuais conforme o grupo étnico e o grau de proximidade ou de afastamento do eu que escreve com a cultura de acolhimento. Por exemplo, o facto de se ter nascido num país estrangeiro determina todo um conjunto de problemas diferentes daqueles que encontramos nos imigrantes nascidos na América. Antes de mais, as segundas gerações de imigrantes não passaram pela experiência de separação cultural e, portanto, têm um conhecimento do Velho Mundo necessariamente mediado pelas lembranças e pelas narrativas e imagens que os pais trouxeram consigo. As primeiras gerações, têm, por isso, uma mais intensa consciência de clivagem cultural e de transformação pessoal do que as segundas gerações. Elas têm de harmonizar dois ciclos completos de aprendizagens: ao primeiro ciclo da aprendizagem na terra de origem, segue-se um segundo ciclo de aprendizagem de uma segunda geografia, de uma segunda língua, de uma segunda educação, de uma segunda
vivência cívica.
No fio da vida é seguramente uma autobiografia de imigrante nascido no estrangeiro, onde estão presentes não apenas as quatro linhas estruturantes identificadas por William Boelhower como a profunda consciência da separação, dos contrastes, das expetativas frustradas, da diferença cultural, assim como a celebração saborosa das vitórias e a correspondente amálgama de emoções envolvendo cada episódio e cada encontro e desencontro.
É um autorretrato muito genuíno e sentido aquele que o autor nos oferece neste livro, no qual os traços dinâmicos, ora leves ora carregados, vão mostrando o previsível ao lado do inesperado, o riso e as lágrimas, os sucessos e os insucessos, as dúvidas, as imperfeições, as pequenas histórias que dão dimensão humana aos grandes protagonistas. A sensação que temos ao ler este livro é que estamos a ver a vida a desenrolar-se, pois a escrita fez-se sem borracha que apagasse a dor mais funda ou o erro mais incómodo. É uma escrita ousada, sem medo das palavras e daquilo que elas nomeiam, além de corajosa, como salienta Daniel de Sá no prefácio ao livro; uma escrita que não tem medo nem das sombras nem das pancadas e que se abre aos clarões de generosidade, de partilha, de confiança e de amor. E uma escrita que seguimos com um interesse sempre renovado, frequentemente sentindo-nos a acompanhar o fio de um romance.
São várias as lições que retiramos desta autobiografia. Além dos aspetos mais particulares, ligados à caracterização das duas culturas em confronto, à dificuldade de integração na América, aos conflitos entre gerações, à dureza do trabalho e à solidão, há mensagens de alcance universal. Algumas delas já as ouvimos ou lemos noutros lugares, mas o facto de reaparecerem aqui no enquadramento desta história de vida invulgar (como dizia a Jeanette) reforça a dimensão universal das experiências e emoções.
Sem procurar ser exaustiva, deixarei apenas três exemplos:
1º. Muito do que parece ser uma infelicidade, um contratempo ou um obstáculo – é tão-somente uma preparação. Repare-se como, vistas bem as coisas, o autor acaba por se sentir afortunado por ter estado ausente da escola dos 11 aos 23 anos, pois a sua mente estava virgem aos 23 anos para receber um alimento que outras mentes mais saturadas repeliam.
2º. Por maior que seja a nossa ilusão de controlo, basta um acontecimento inesperado para subitamente tudo mudar. Como se lê na página 282: «Para bem ou para mal, as grandes voltas da vida pareciam depender de muito pouco. Para mim fora um coice de vaca».
3º. Os grandes ensinamentos não provêm de professores que sabem muito, mas de mestres inspiradores.
Esta história de vida é inspiradora para um universo de leitura que extravasa a população migrante, pois se, como dizia Platão, uma vivida não-examinada não merece ser vivida, há vidas que exigem exame para que o seu exemplo seja conhecido e perdure nos fios do tempo.
A concluir, impõe-se uma nota sobre o prefácio de Daniel de Sá, cujo mérito radica não apenas na leitura lúcida que faz do livro, sintetizando em poucos parágrafos o essencial do conteúdo, mas na qualidade literária das suas palavras e das citações que faz, bem como das imagens que cria – nomeadamente, a que aproxima Francisco Cota Fagundes de Van Gogh, o pintor da «dramática e encardida fragilidade humana».
O facto de esta vida ter sido examinada não só lhe acrescentou valor como nos impregna, enquanto leitores, com a esperança de a matéria frágil de que os nossos próprios fios são feitos poder um dia ser digna de exame. É por intermédio de certas (auto)biografias que chegamos à conclusão de que a vida vale a pena, apesar das grandes pancadas que levamos. E esta é outra das lições deste livro. Nunca se sabe que coice de vaca nos espera nem aonde ele nos levará.
(*) A autora, Profa.Doutora Leonor Sampaio da Silva é ensaísta e docente do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores,Portugal.