Jorge de Sena e Vitorino Nemésio são dois notáveis autores portugueses com laços aos Açores de diferente intensidade: Nemésio nasceu na Praia da Vitória (Terceira) e Jorge de Sena era filho único de Augusto Raposo de Sena, natural dos Açores (S. Miguel) de ascendência aristocrata e comandante da Marinha Mercante. No entanto, estes escritores, cujas representações da tempestade aqui comparamos, têm outros pontos em comum, a nível biográfico, como o facto de terem emigrado para o Brasil, onde exerceram as funções de professores universitários e de terem falecido em 1978.
Tomando como corpus central o conto “História do Peixe-Pato” (1959) de Sena e o romance Mau Tempo no Canal (1944) de Nemésio, tentaremos compreender o modo como, por vezes, o fenómeno atmosférico da tempestade, inscrito no universo textual, se poderá refletir no estado de espírito das personagens, ou dos próprios narradores, condicionando-lhes a forma de agir.
Em Mau Tempo no Canal, como é sugerido pelo próprio título, deparamo-nos, no início (cap. I – “a serpente cega”) com a irrupção de uma tempestade, desencadeada durante o encontro entre João Garcia (oriundo duma família recentemente endinheirada) e Margarida Clark Dulmo, uma jovem proveniente de uma família aristocrática açoriana, arruinada.
A descrição do fenómeno é feita de forma progressiva, principiando com uma ligeira brisa. Seguidamente, torna-se mais persistente e depois principia a intensificar-se: “O vento soprou com este levantamento misterioso que enche os minutos perdidos. Começava por um assobio rente às figueiras anãs e intenso ao longe, nas árvores, que agora vergavam com fortes estalidos e um ramalhar mais longo.” (NEMÉSIO, 1999, p. 40).
Verificamos assim que o vento, também símbolo do poder espiritual, inconstância e fecundidade, é o primeiro elemento anunciador do mau tempo, assumindo, neste caso, uma vertente destrutiva.
De súbito, a tempestade eclode e através do recurso à gradação, revela-se o aumento da sua intensidade. Este fenómeno termina abruptamente com o encontro aparentemente idílico entre os dois jovens apaixonados. Longe de refletir o estado de espírito das personagens, assume-se antes como um entrave enviado “pelos deuses” para estragar o momento de felicidade proporcionado por um encontro clandestino. No entanto, ela pode indiciar o “temporal familiar” vivido por Margarida, devido ao facto de o pai os ter visto juntos. A vulnerabilidade das personagens é evidente, perante o poder da tempestade, da qual tentam escapar e, neste caso, tal como as árvores e os restantes elementos da natureza, parecem quase simples marionetas manipuladas pelo temporal.
Contudo, tal como refere Maria Alzira Seixo, “The real “mau tempo” here is not the ciclone, but Margarida’s thwarted love, wich is complicated by familial rivalries, social inequalities, and problems internal to the protagonists’ families” (136:2007).
Por conseguinte, esta intriga remete para o Romeu e Julieta de Shakespeare que, de certo modo se encontra subjacente ao romance como modelo literário. Tal analogia evidencia-se na rivalidade entre as famílias e na existência de um amor proibido e impossível, embora com um desenlace menos trágico do que na obra Shakespeariana. Com efeito, o amor impossível entre Margarida e João Garcia atravessa a narrativa. O último encontro ocorre no final, após uma longa ausência, quando Margarida já casou com André Barreto (filho do Barão de Urzelina) e João com Laura Dutra.
Para além da já mencionada animosidade entre as famílias, importa ainda referir, tal como menciona Francisco Cota Fagundes, a presença da peste como metáfora das implicações desse ódio. Assim, ela instaura na diegese uma outra dimensão de “mau tempo”, que ultrapassa a dimensão “atmosférica” para se inscrever na social, através da utilização metafórica da doença. Neste contexto, “a metáfora da peste empresta a Mau Tempo no Canal uma riqueza palimpsética única, pois coloca o romance na órbita intertextual de uma tradição ocidental que remonta à antiga Grécia e à Bíblia, passa por Shakespeare e se prolonga pelo século XX adiante (…) ” (Fagundes 2003, p.107).
Deste modo, a tempestade (que se encontra ausente de outras obras de Nemésio, como é o caso de O Corsário das Ilhas, reveste-se de um caráter metafórico, como já notou Maria Alzira Seixo, podendo também representar, se seguirmos uma conceção bachelardiana, a cólera (aliada ao ódio entre as famílias, conotado também, como já antes foi referido com a peste), evidenciada, por exemplo, no facto de Margarida, após o seu encontro com João Garcia, interrompido, precisamente pela tempestade, ter sido agredida pelo pai, devido ao facto de se ter encontrado com João. Podemos pois referir, neste contexto a existência de uma comunicação direta e reversível das violências, da cólera, sinais objetivos da tempestade, materializadas na atitude agressiva de Diogo Dulmo.
Deste modo, constatamos que a tempestade que atravessa o Mau Tempo no Canal se desenrola na terra, no mar, mas também na alma das personagens, sobretudo de Margarida, que acaba por ser vencida pelas convenções sociais, obedecendo ao desejo do pai. Além disso, na raiz da representação da tempestade inscrevem-se, como modelos de referência, outras obras e outros “temporais”, como aqueles que surgem na Carrière d’un Navigateur do Príncipe Alberto e nas Ilhas Desconhecidas de Raul Brandão.
Por seu turno, o início do conto “História do Peixe Pato”, de Jorge de Sena, remete-nos para um espaço imenso e pouco definido, pois situa-se “lá para as bandas das Áfricas, das Índias ou do Brasil” (SENA, 1986,p. 68). Além disso, esta ambiência envia-nos para um tempo primordial, refletido numa espécie de inocência inicial que habita o homem, visto que ele não sabe quem é, nem de onde veio, como se se encontrasse ainda no “paraíso perdido”.
Seguidamente, a leitura na narrativa remete-nos para o Robinson Crusoé de Daniel Defoe (1660-1731): a ilha situada num ponto geográfico pouco definido, habitada pelo homem solitário que constrói a sua cabana frágil e vulnerável às imprevisíveis tempestades.
Evidencia-se a fragilidade e a precariedade da ação e construção humanas perante os caprichos da poderosa Natureza, que reclama o seu espaço destruindo as vãs tentativas da sua apropriação da parte do homem. Então, assim que o mau tempo surge, a cabana é imediatamente destruída. Deste modo, as sucessivas tempestades parecem igualmente contribuir para um processo de amadurecimento, através da ação do ser humano na natureza, como se o facto de ultrapassar essas diversas provas (um pouco à semelhança do que sucede com o mito de Sisifo), lhe permitisse alargar a experiência perante mundo que o rodeia, embora sem grandes preocupações de lhe conhecer a essência, pois todos os seus atos são desencadeados por questões meramente práticas de sobrevivência, como é o caso da alimentação e do abrigo. Por isso, constrói a cabana sempre do mesmo modo e no mesmo local, numa espécie de processo automatizado.
Assim, os espaços fulcrais onde se desenrola a ação e que, de certo modo, são metamorfoseados pela ação da tempestade são o mar, a floresta, a praia e o cabo. Tal como refere Carlo Vittorio Cattaneo (1983, p.177), o mar constitui um universo calmo e acolhedor, impregnado de significação simbólica que o leva a estar conotado com uma fonte de vida, um meio de purificação e um centro regenerador, encerrando de forma ambivalente imagens da vida e da morte.
Contudo, este cenário de tranquilidade paradisíaca é completamente abalado pelo temporal, cujo prenúncio faz com que o homem (de quem nunca sabemos o nome) abandone a cabana para “esperar com paciência que a tempestade aumentasse, fingisse que ia acabar com o mundo e amainasse de todo”. (Sena, 1981, p. 29).
Note-se que a tempestade é também de certo modo, personificada, tal como
sucede nas descrições de Raul Brandão ou de Victor Hugo, visto que ela “finge” que vai acabar com um mundo, numa espécie de jogo, que pretendesse pôr à prova o homem, que se refugia no cabo, entidade protetora.
Neste caso, os elementos predominantes da tempestade são a chuva e o vento, enquanto que o mar parece à margem de toda a turbulência, pois as vagas limitam-se a “hesitar” e “apenas estrondear em surdina”. Mas apesar disso, é instaurada uma dimensão de estranheza, visto que o mar parece adquirir uma dupla personalidade já que ” o mar parecia o mesmo e outro”.
A água, segundo Yi-Fu Tuan (1990: 23), representa a imagem do inconsciente, do lado feminino e passivo da personalidade humana, assumindo-se como potencial fonte de poder. Assim, a imersão na água significará a perda da consciência e a morte – é precisamente o que sucede tanto com o Peixe-pato, como com o homem.
É no meio da tempestade que o homem evoca o facto de ter deixado de sentir necessidade de falar com os pássaros no momento em que conheceu o peixe-pato, com o qual estabeleceu uma comunicação não verbal e sui generis.
Regressando à descrição da tempestade, notamos-lhe, tal como sucedia na de Mau Tempo no Canal, uma gradação, um aumento da intensidade que faz apelo às sensações, não apenas visuais – mas também auditivas e tácteis, inscritas através do “tinir dos relâmpagos”, do negrume, “nos trovões, que reboaram uns por sobre os outros, se distinguiu um silvo que aumentou, se transformou em ronco, em estralejar, num batimento repetido a espaços sobre um som contínuo, e o vendaval e a chuva tombaram verticais”. (SENA, 1981, p. 37).
Deste modo, a gradação presente na descrição, para além de conter em si o aumento de intensidade do fenómeno, ainda é tecida através de um predomínio das sensações auditivas, pois apesar de o olhar nos permitir a aquisição de uma perspetiva mais abrangente do mundo que nos rodeia, a audição possibilita-nos uma relação mais próxima e intensa com o espaço exterior.
A representação da tempestade prossegue, num cenário cada vez mais violento:”(…), parecia desmembrá-lo, estripá-lo, dissolvê-lo, e sentia, mais do que via, subirem continuamente contra o cabo imensos panos de água que eram vagas desfeitas, logo abaixadas pelo vento e a chuva desabando”. (SENA, 1981, p. 37).
Neste excerto é o tato que se impõe, pois o homem sente-se esmagado, dissolvido, como se perdesse a sua própria essência e substância. Neste caso, aniquilados todos os outros sentidos, resta apenas, no fundo, a sensação táctil, já que ele “sentia” mais do que “via”, pois o toque permite-nos um conhecimento mais aprofundado e intenso do mundo Tal como refere Tuan, “Touch is the direct experience of resistance, the direct experience of the world as a system of resistances and pressures that persuade us of the existence of a reality independent of our imaginings.” (1990:8).
Na verdade, este climax e desenlace da tempestade mergulham o protagonista numa espécie de inconsciência, verificando-se o culminar de um processo de desintegração e de “dissolução”, que o fazem perder a noção do tempo e do espaço:
“Quanto tempo assim esteve? Agarrado como? Não o saberia dizer (…) Dias? Horas? Apenas uns instantes? Não deu sequer por ter acabado a tempestade.”. (SENA, 1981, p. 37).
A sequência de interrogações marca precisamente esse processo de aniquilação da consciência, evidenciado após o término da tempestade e que poderemos ler como um prenúncio de morte. Contudo, neste caso, o temporal parece ter sido um agente transformador, pois ele apercebe-se imediatamente de uma mudança, anunciada, em primeira instância, novamente pelo tato, já que é apreendida mesmo antes de abrir os olhos.
Então, após a tempestade, o homem procura desesperadamente o peixe-pato, sem qualquer resultado, até ao momento em que o encontra morto, a flutuar no mar. Deste modo, a água, o mar assume-se como um território da morte. Porém, tão intensa como a tempestade atmosférica é a psicológica vivida pelo protagonista ao descobrir o cadáver do “amigo”.
Em suma, neste conto a tempestade acaba por servir, não apenas como força metamorfoseadora, mas também como “metáfora -ponte”” da relação do homem com o mundo e com o outro.
Do mesmo modo, é a última tempestade, representada pormenorizadamente em toda a sua violência, que anuncia a morte do peixe-pato, desencadeando a consequente “tormenta psicológica” que afeta o protagonista. Seguidamente, é o próprio homem que morre em condições tão misteriosas como o peixe-pato. Por conseguinte, podemos considerar que a tempestade, assume uma simbologia ambivalente: possibilita o encontro – aliás, tal como refere Francisco Cota Fagundes, este encontro “constitui um ponto de chegada no itinerário criativo e espiritual do Autor” (1999: 43) – mas também a separação, a perda; é fator de destruição, mas também de regeneração e de reconstrução; e, por último, delineia-se como presságio de morte. No fundo, a tempestade, atravessada por estas ambivalências, assume-se como uma representação metafórica da condição existencial, eivada de mistério e absurdo.
Assim em ambos os textos abordados, as descrições das tempestades espelham estados de espírito, relações sociais, formas de encontro ou desencontro com o “outro”. Assim, as tempestades desenhadas nas duas obras assumem-se como uma espécie de teia, inscrita na tessitura narrativa, que enlaça e atravessa os elementos naturais (o mar e a terra) para se ancorar na alma das personagens.
Referências
BACHELARD, Gaston. L’eau Essai sur l’imagination, Librairie José Corti, 1942.
CATTANEO, Carlo Vittorio, “Alcune ipotesi intorno al “Peixe-Pato”, Quaderni Portoghesi, 13-14 (primavera/outono, 1983; número especial dedicado a Jorge de Sena), pp.175-200.
CHEVALIER, Jean et A. Gheerbrant, Dictionnaire des symboles, Paris,Éd. Robert Laffont, 1982.
NEMESIO, Vitorino, Obras Completas. Mau Tempo No Canal. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1999.
SEIXO, Maria Alzira. “Mau Tempo no Canal: An Iridescent Metaphor”, in Vitorino Nemésio and the Azores, Center for Portuguese Studies and Culture, University of Massachussetts Dartmouth, University of Massachussetts Dartmouth, 2007, pp. 129-169.
FAGUNDES, Francisco Cota. “A escrita como índice de universalidade em Mau Tempo no Canal: Subsídios para o seu estudo”. in Vitorino Nemésio and the Azores, Center for Portuguese Studies and Culture, University of Massachussetts Dartmouth, University of Massachussetts Dartmouth, 2007, pp.75-111.
——–. O encontro com o outro: a “história do Peixe-Pato”, in Metamorfoses do Amor, Estudos sobre a ficção breve de Jorge de Sena, Lisboa, 1999.
———Desta e da outra margem do Atlântico. Estudos de literatura açoriana e de diáspora, Lisboa, ed. Salamandra, 2003.
SENA, Jorge de.”História do Peixe-Pato”, in Antigas e Novas Andanças do Demónio, Lisboa, Edições 70, 1981.
TUAN, Yi-Fu, Topophilia, A Study od environmental Perception and values. New York, Columbia University Press, 1990.
Dora Nunes Gago
[1] Versão revista, abreviada e modificada do artigo intitulado “Tempestades na terra, no mar e na alma em Vitorino Nemésio e Jorge de Sena”, publicado na Revista Desenredos, Janeiro de 2012, em: http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/12-artigo-DoraGago-tempestades.pdf
Dora Nunes Gago é professora na Universidade de Macau, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora de pós-doutoramento da FCT, na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias.
FOTO de http://farm5.staticflickr.com/4129/5128701650_df8bf8660a_m.jpg (estado do mar S. Miguel)