MENINO JESUS ENTRE OS DOUTORES
Mário T Cabral, 2013
37. RETRATOS DE FAMÍLIA
b) Dostoievski
Parece uma provocação juntar o retrato de Dostoievski a uma galeria da família católica, sendo ele associado à morte de Deus; e para mais russo e, como tal, ortodoxo, com declarados ataques a Roma.
No entanto, não se trata duma provocação. Está longe de ser consensual que Dostoievski seja ateu; quanto à sua formação ortodoxa, é muitíssimo pouco aquilo que nos separa em doutrina dos nossos irmãos.
Mas este nem sequer é o busílis. Dostoievski é um génio da Literatura universal e o que nos interessa é a sua obra, verdadeiramente prodigiosa; ora, esta obra não se entende sem o lastro cristão, tivesse ele recusado ou não tal pano de fundo indesmentível.
Um génio não tem que ser um santo – aliás, a pedra de tropeço dos génios cristãos é quando cedem nas exigências da Arte para fazerem o frete à dogmática.
Isto não quer de forma alguma dizer que o génio tem de ser um demónio; eis outro erro fatal dos artistas cristãos menores. Há muita subserviência naqueles que atacam ferozmente a Santa Madre Igreja, como crianças mimadas.
Há que ter presente e muito claro o discurso da Verdade, tesouro que a Santa Madre Igreja guarda com unhas e dentes, como deve ser; e a moral daí resultante, caminho seguro para atingir o Céu.
O génio não tem, necessariamente, que falar deste caminho, mas dos atalhos e das fugas que respeitam à natureza humana decaída, as sombras, a escuridão do pecado e a vileza e plangência que daí advêm.
Quando a condição humana é revelada neste vale de lágrimas mas sem o Sol da Esperança e da Verdade, a custo encontramos genialidade, porque não há humanismo sem a fímbria da Transcendência.
A maior parte da literatura moderna cai neste fosso sem sublime… e não presta. Exemplo: não é por falar do mundo tal e qual ele é que o realismo português não presta – mas por recusar o discurso da Verdade, atacando a Igreja, num frete invertido que não faz mal à Fé mas destrói a Arte.
Dostoievski passa incólume por todos estes perigos. A densidade psicológica dos seus romances não fica atrás da complexidade metafísica e teológica. Depois dele, a tarefa dum escritor cristão fica mil vezes dificultada; toda a tentativa parece uma brincadeira de crianças, um discurso ingénuo sem valor.
É imperioso um crente ler “Os Irmãos Karamazov”. Respire fundo, primeiro, esteja ciente da sua Fé… e contemple o que acontece quando nos afastamos dela. Há pouquíssimas outras páginas onde o turbilhão das paixões humanas seja deste modo expresso; à russa, com excessos que entram pela loucura.
Mário T. Cabral Natural da Terceira, Açores é professor no liceu de Angra. É Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu último livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.
Imagem de: http://astrosun2.astro.cornell.edu/~deneva/dostoyevsky.htm