(Autorretrato)
MENINO JESUS ENTRE OS DOUTORES
Mário T Cabral, 2013
37. RETRATOS DE FAMÍLIA
c) GAUDÍ
Um génio não tem de ser um santo, mas nada impede que seja. Gaudí é, talvez, o exemplo moderno mais perfeito do artista católico que merece chegar aos altares pela via pulchritudinis. O processo está em análise.
O arquiteto catalão também interessa quando visto exclusivamente pelo prisma humano, na medida em que o seu estilo é inconfundível dentro do modernismo e considerado quer pelos seus pares como pelas multidões.
Ou seja: a religião católica é central no processo criativo de Gaudí e Gaudí é incontornável na arquitetura contemporânea. A sua obra é um manifesto e uma evangelização, tanto mais quanto vai contra a maré.
Quando se pensa em modernismo imagina-se, grosso modo, edifícios de linhas retas e simples, sem ornamentos, repetidos arranha-céus impessoais de betão e vidro.
Os princípios teóricos de Le Corbusier e comparsas são públicos: o racionalismo, o progresso tecnológico, a economia, a visão do homem marcada pela revolução comunista.
Nada mais oposto ao estilo de Gaudí, onde a custo se encontra uma reta, onde as curvas são espirais e não círculos perfeitos; onde o ornamento se impõe com interesse individual em todo o lugar (ex: as varandas).
Troca a fria abstração geométrica pelo estudo da Natureza. Segundo ele, aqueles que procuram as leis da Natureza para as introduzir nas suas obras colaboram com Deus Pai Criador.
Uma pessoa fica arrasada com a exuberância deste homem: os edifícios parecem construções de formigas, os túneis troncos que respiram; varandas asas ou teias; as escadas não correm, voam… e a cor e a luz por toda a parte, desde a cerâmica aos vitrais.
Não é que a Villa Savoye não seja bela – e, de certa forma, comparada com ela, todo o Gaudí parece um bárbaro. Porém, não há como não ver a Vida nas suas obras.
E se as suas obras são a Vida, não há como não ver a Morte na elegante palidez do estereótipo moderno. Gaudí é sangue, Gaudí é nervo, Gaudí é Espanha, Gaudí é sul.
Ele próprio fazia a distinção entre o Mediterrâneo e o Norte, bem vistas as coisas, entre católicos e protestantes: nós somos realistas, ligados ao concreto; eles, idealistas, molestados por fantasias e fantasmas. “Orestes sabe o que quer, enquanto Hamlet se atormenta com a dúvida”.
Em 2010 Bento XVI consagrou a basílica da Sagrada Família. Começada em 1882, só em 2026 estará completa; o arquiteto morreu sem a ver por metade. Para ela pediu nas ruas, acabando por ir viver para dentro da parte construída.
A ascese mística do artista no evoluir da obra está documentada.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores é professor no liceu de Angra. É Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu último livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.