Revisitação à obra de Eduardo Mayone Dias e a nossa imigração na Califórnia
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Vamberto Freitas
Para os que não o conhecem aqui nas ilhas: Eduardo Mayone Dias nasceu em Lisboa em 1927, e após a sua licenciatura na Universidade de Lisboa, depressa partiria para o estrangeiro, primeiro para o México e depois para os EUA em 1961, onde se viria doutorar na Universidade do Sul Da Califórnia em Literaturas Hispânicas, de seguida iniciando a sua carreira na Universidade da Califórnia, Los Angeles, a leccionar língua e literatura portuguesas. Este texto é tirado de um prefácio que escrevi para o seu livro Miscelânia Lusalandesa, publicado em Lisboa pelas Edições Cosmos em 1997. Acaba de apresentar em Artesia, uma cidade nos arredores de Los Angeles onde vivem milhares de açorianos, e à qual ele sempre manteve uma relação de grande afecto e que agora lhe prestou homenagem no passado dia 8 de Outubro pela recente publicação Memórias De Um Burocrata Invisível: Autobiografia e Algo Mais, da autoria de Eduardo Alberto De Oliveira Rocha. Não o li ainda mas não podia adiar estas minhas palavras, pois referia-me já então à sua bibliografia debruçada sobre a nossa imigração e vida em toda a parte. Foi um dos meus mentores através da sua escrita em livros e jornais, e nunca hesitava em convidar os seus amigos à casa onde sempre viveu no centro da grande metrópole. Há dívidas que nunca se pagam, não é possível retribuir certas dádivas. O trabalho de Mayone Dias, de que Miscelânia Lusalandesa é apenas uma leve mas viva amostra, à semelhança de Coisas da Lusalândia, também publicado no nosso país, constitui uma raridade sobre a vida dos portugueses no além-fronteiras. Acompanhou sempre de perto a caminhada da imigração portuguesa na América. Poderia muito bem ter optado exclusivamente pela torre de marfim que uma instituição como a Universidade da Califórnia oferece aos seus docentes. Sempre entendeu ele, no entanto, que a presença cultural portuguesa nos EUA deveria ir além das conferências universitárias sobre os ditos vultos do nosso mundo e incluir a actualidade de todo um povo que começou a chegar lá a fins do século XIX, aquando da lendária Corrida ao Ouro. Foi assim que a “Portufórnia” – o curioso e diversificado mundo dos portugueses na Califórnia – se tornou, creio, a mais estudada e divulgada parcela da nossa diáspora, e que hoje tem muita gente a dar continuidade a esse trabalho, especialmente através de edições da própria Portuguese Heritage Publications of California, com sede em San José, a cidade no coração do Silicon Valley.
Miscelânia Lusalandesa é constituído pela série de estudos, crónicas e comentários acerca da nossa visa californiana de ontem e de hoje, anteriormente publicados em vários periódicos de Portugal e da nossa imigração, integra uma obra unificada pela sua temática, mas que tem tomado formas bem diferentes. Para Mayone Dias, eis aí uma faceta da sua discreta “revolta” contra o tal nicho universitário fechado. O estudo de qualquer grupo humano, por mais inconsequente que pareça em termos político-culturais, não necessita de desculpas ou justificações. Somos todos, quer como indivíduos quer como comunidade em qualquer canto deste mundo, espelhos vivos da nação – ou, como neste caso americano, das nações – a que pertencemos. Todas as suas intervenções neste campo tentam essencialmente responder a questões que são de máxima importância, indispensáveis a um entendimento, o mais completo possível, de quem somos nesse mosaico de gentes que continua a ser a América. Desde o Havai de tempos idos, onde estão sepultados também ossos portugueses e onde ainda hoje alguns tentam reavivar a sua memória ancestral lusa nos mais escondidos lugarejos daquelas ilhas e da Califórnia, Mayone Dias, quase só, insiste em perceber o que é ser-se português transplantado em viveiros radicalmente diferentes das nossas origens. “A Presença Portuguesa no Havai”, por exemplo, traça com todo o rigor académico do historiador a chegada àquelas ilhas de um grupo ido da Madeira e dos Açores para trabalhar nas plantações da cana de açúcar, descreve minuciosamente a sua sobrevivência étnica até a tempos recentes, aponta aí o que pode acontecer a outros que não se rejuvenescem através da chegada contínua de novos imigrantes – o seu apagamento quase total como entidade nacional devido à assimilação inevitável das gerações nos grandes meios que os rodeiam. Do mesmo modo, “Baleeiros Portugueses na América” conta a epopeia dos primeiros imigrantes açorianos que chegaram à América há mais de 100 anos e se foram enraizando até desenvolverem, juntamente com outras etnias, a rica agricultura e indústria lacticínia da Califórnia. O livro Açorianos na Califórnia (1997), por sua vez, é um conjunto de entrevistas feitas ao longo dos anos a “pioneiros” ainda de boa memória e a outros mais novos sobre o que foi e ainda é a vida das nossas comunidades. A obra de Eduardo Mayone Dias, como já disse, de tudo contém um pouco. Debruça-se sobre aspectos da vida imigrada tão variados como uma série de abordagens que vão desde os portugueses de San Diego que participaram pela América na II Guerra Mundial com os seus barcos da grande pesca à crise que eventualmente haveria de atravessar essa comunidade devido ao declínio da indústria piscatória norte-americana, a comentários e coloridos “instantâneos” que nos apanham nos momentos tragicómicos inerentes à condição de “estranhos em terra estranha”, a investigações e análises da escrita de imigração que sempre produzimos desde as nossas primeiras aventuras a oeste, tudo o que poderá explicar e permanecer na memória das gerações vindouras..
A esta quase incrível persistência e dedicação à história e registo da presença portuguesa na Califórnia, juntam-se qualidades como uma natural capacidade de empatia que Mayone Dias sempre demonstrou pelo grupo e, ao mesmo tempo, a ausência de qualquer condescendência ante o que ele entende ser defeitos ou meras fraquezas colectivas nossas. As nossas comunidades açor-californianas estão dispersas por todo o estado, separadas pela geografia e pelo seu desenvolvimento autónomo. Existem centros de operários e comerciantes (San José e arredores de Artesia na Grande Los Angeles), assim como centros rurais onde naturalmente predominam a agricultura e lactcínios, Na maioria de origem açoriana, as diferenças e divisionismos trazidos das ilhas esbatem-se mesmo neste diversificado rumo sócio-económico. Pertence quase toda a primeira geração à grande vaga emigratória que foi retomada nos anos 50 e 60, tendo estancado, como se sabe, em tempos recentes. Foi precisamente este grupo que encetou vigorosamente uma autêntica regeneração sócio-cultural à beira do Pacífico. Reergueram-se sociedades comunitárias, agudizou-se entre todos o interesse e respeito pela cultura e tradições ancestrais, começou-se a insistir, mesmo que sem grandes repercussões no meio americano, no reconhecimento pela obra total e contínua das nossas comunidades desde os primeiros tempos na Califórnia. É considerando este período histórico – o próprio 25 de Abril abalou em vários sentidos a nossa imigração – e os outros antecedentes que se deve perceber os dramas e comédias tanto em Miscelânia Lusalandesa como em inúmeras outras colectâneas da sua vasta obra.
Miscelânia Lusalandesa faz parte dessa grande obra-espelho de todo um povo. Ficará nos nossos arquivos para sempre, e aí relembrar e ensinar levemente a quem queira saber de um Portugal geograficamente reduzido mas de onde saiu um povo heterogéneo e que foi capaz de se reinventar quando colocado nos mais longínquos e estranhos recantos do nosso mundo. Traz-nos, é certo, apenas uma parcela do mundo lusíada e uma que nunca teve o lugar merecido na História da nação. No entanto, os factos e a reavaliação das nossas realidades vão-se impondo com esforços como este. Os milhões de portugueses que saíram do nosso país não poderão permanecer para sempre como fontes de remessas e objecto de um ou outro discurso governamental em datas já tornadas banais, não devem ser apenas um ocasional apêndice da retórica política nessas ocasiões.
Junto aqui a minha voz à de outros (Diniz Borges em particular, a quem Eduardo Mayone Dias já entregou parte do espólio) que têm reclamado o reconhecimento da obra do autor pelo Governo e Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Seria um acto de pura justiça, um gesto digno e oficial de gratidão a quem não só produziu uma obra superior sobre os açorianos na Califórnia, como foi um mestre de toda uma geração, a minha, no incentivo e apoio às nossas próprias tentativas de dinamizar as nossas comunidades para uma melhor integração na grande sociedade norte-americana.
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Eduardo Mayone Dias, Miscelânia Lusalandesa, Lisboa, Edições Cosmos, 1997. Parte deste texto foi retirado do prefácio que escrevi para este livro no ano da sua publicação. A foto foi tirada em Artesia, a 8 de Outubro, aquando da homenagem que esta nossa comunidade lhe prestou. Publicado originalmente no “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 20 de Outubro de 2107.