Nas quase infinitas possibilidades de conjugação dos genes humanos, que acaso ou que predestinação prepara o ser que somos? De outro pai ou de outra mãe seríamos outro? O espírito pertence a um corpo, e, não tendo esse corpo para habitar, não chegaria nunca a existir? Os génios são filhos da sorte ou fazem-se a si mesmos? Ou são feitos também pelos que os geram e os educam? Amadeus Mozart teria começado a compor aos cinco anos se não fosse filho de Leopold Mozart e de Anna Maria Wolfgang? Se Isaac Stern nunca tivesse pegado num violino, não chegaríamos a saber dessa sua possibilidade de ser genial. E ele talvez não tivesse outra. Quantos Vermeer ou quantos Newton o mundo perdeu porque não se encontraram, um dia, com a arte ou a ciência para que estariam predestinados?
Como começou Deus, ou o acaso, a preparar a genialidade de Rodolfo Botelho Vieira? Talvez num seu bisavô da Graciosa, a minúscula ilha dos duzentos pianos, que foi viver para o Faial. E na sua avó, a professora Celeste Ribeiro Pereira, que cresceu na Horta, cidade aberta ao mundo e dada às artes, e ela mesma artista que pinta com linhas e agulhas, ou com tintas e pincel. E no seu avô, o professor Aurélio do Couto Botelho, capaz de ensinar uma criança a declamar Camões como se fosse um adulto, ou um adulto a recitar Afonso Lopes Vieira como se fosse uma criança. Uma das pessoas fundamentais no desenvolvimento humano e cultural da Maia, pelo que fez na escola e fora dela. Ensinou música, teatro, criou uma associação recreativa e cultural, e deu ao Rodolfo lições de bandolim, tendo-se empenhado em que ele aprendesse a tocar viola da terra com o seu conterrâneo Edmundo Pimentel. Essa força de vencer veio também, certamente, da família do pai, gente habituada a lutar na vida e a não reconhecer facilmente uma derrota. Por fim, a Nélia Botelho e o António Vieira. A mãe, professora, dedicou-se a ser educadora dos filhos. O pai, um homem culto em muito mais do que a engenharia da sua profissão, pôde ter o privilégio de garantir à família uma vida sem dificuldades financeiras. E há ainda Manuel Francisco Aguiar que, quando criou a Academia de Música da Ribeira Grande, não poderia imaginar que um dos seus primeiros alunos viria a ser um dos grandes violinistas do nosso tempo.
O Rodolfo tem o dom raríssimo do ouvido absoluto. Apenas uma em cerca de cada dezena de milhares de pessoas nasce com esse privilégio, que também pode ser adquirido com a prática. E que não é indispensável para se ser um grande executante ou um compositor genial, que os houve e o não tiveram. Mas ajuda muito, sobretudo no violino, que é um dos instrumentos que mais requerem grande domínio físico e mental e um ouvido privilegiado. Por isso muitos violinistas famosos se tornaram figuras quase lendárias, tal é o seu poder de sedução. Ao ponto de ter havido quem garantisse que vira a mão do Diabo a guiar o braço de Paganini.
Havendo aparecido no século XVI, evoluindo a partir de antigos instrumentos de cordas, o violino viria a ser o rei da orquestra. Nenhum outro terá merecido tanto como ele a atenção dos compositores. Nem mesmo o piano, que com frequência lhe surge associado em concertos a duo ou com orquestra. O próprio Chopin, além de uma sonata para violoncelo e piano e de dois concertos para piano e orquestra, escreveu um trio para violino, violoncelo e piano. E, se pouca gente sabe o nome de um artífice célebre por construir pianos, quase ninguém desconhece quem foi Stradivarius.
O Rodolfo domina o arco com tal subtileza que, mesmo nos agudos, não se ouve o roçar dele nas cordas. Apenas sons, sons puros, como se o próprio ar os produzisse. Mas, se a execução for, por exemplo, de uma peça à maneira zíngara, então já o ranger do arco nas cordas se destaca e se transforma em música também.
Para servir de prova, embora circunstancial, do que fica dito, repare-se em alguns dos momentos mais marcantes na carreira deste que foi um menino-prodígio e hoje é um violinista prodigioso.
Rodolfo Botelho Vieira, que nasceu em 18 de Março de 1981, na Ribeira Grande, iniciou os estudos musicais na Academia de Música desta cidade, tendo concluído o 8º grau no Conservatório Regional de Ponta Delgada, onde foi aluno de Grigory Spektor e de Jane Antoniuk. Licenciou-se em violino na Academia Nacional Superior de Orquestra, e obteve o Mestrado e o Certificado em Performance na Northwestern University of Chicago. Solista em várias orquestras, destacou-se na Orquestra de Estudantes da Northwest University. Entre outros prémios de grande mérito, venceu por quatro anos consecutivos o concurso de câmara da Meadowmount School of Music, de New York, e foi laureado pela Philharmonic Society of Arlington no concurso “Young Artist Competiton”, em Boston. Actualmente, está a concluir o Doutoramento na Northwestern University.
Mas o talento musical da família Botelho Vieira é dom de todos os sete irmãos, pelo que já foram chamados a família Trapp. Se tivessem precedido esta no tempo, seriam os Trapp certamente a ser comparados a eles. Três das irmãs, no entanto, atingiram um nível também extraordinário. São elas a Ana, finalista do curso de violoncelo da Academia Nacional Superior de Orquestra; a Marta, violino, que vai frequentar o 2º ano da licenciatura; e a Diana, piano, o 2º do mestrado, ambas no Chicago College of Performing Arts, o Departamento de Artes da Roosevelt University. A Marta, que faz parte da Civic Orchestra of Chicago, foi seleccionada para um quarteto da Roosevelt University que actuou em Quito, tendo ganho recentemente o primeiro lugar no concurso de violino da Orquestra Sinfónica da Roosevelt, que integrará na próxima temporada.
O Rodolfo e estas três irmãs juntam-se com alguma frequência em actuações conjuntas, apresentando-se como “Irmãos Botelho Vieira”. Em 2008, por exemplo, deram um concerto que deliciou larga assistência no Portuguese Boston Festival.
Perante pessoas assim, é normal dizer-se que receberam um dom que Deus lhes concedeu. Eu digo de uma maneira um pouco diferente. Elas são um dom que Deus concedeu a quantos podem desfrutar do seu talento.
Daniel de Sá
12 de Junho de 2009
http://www.youtube.com/watch?v=vgul8Xcs_OU&eurl=http%3A%2F%2Fmagiadocrochet.blogspot.com%2F&feature=player_embedded
(peça interpretada pela Marta Vieira, irmã do Rodolfo)
FOTO 1, 2, 3: Rodolfo Botelho Vieira
FOTO 4: Quarteto dos irmãos Botelho Vieira no Portuguese Boston Festival, em 2008