Rubem Fonseca, Ou A Estética
Literária Nos Subterrâneos
Serão muito poucos os grandes escritores da literatura
mundial contemporânea que desfrutam de um estatuto tão
único e provavelmente tão invejável como o brasileiro Rubem
Fonseca, o autor dos incomparáveis romances “policiais”
na língua portuguesa. Poderão tentar, mas é inimitável,
nele coexistem perfeitamente o talento inato com a destreza
técnica ou formal na composição das mais belas frases e
parágrafos no idioma dos seus mais antigos antepassados,
quer em Portugal quer no seu país. Aliás, Fonseca, carioca
de gema, hoje já na casa dos oitenta anos de idade, é filho
de pais portugueses continentais, e a sua memória ancestral
nunca se diluiu por entre a balbúrdia histórica da Cidade
Maravilhosa, tendo como referências literárias desde a
meninice os clássicos lusos — começando naturalmente com
Camões — tal como os grandes mestres brasileiros e do
restante mundo. Ler Rubem Fonseca é rever insistentemente
a realidade urbana moderna como nada mais do que continuação
da tragédia humana universal, só que agora colorida,
por assim dizer, pelas vivíssimas cores tropicais e pelos
distintos sons da natureza e da arte que singularizam um
dos mais velhos países do Novo Mundo, no qual partilham,
nem sempre pacificamente, o nativismo com o europeísmo
e outras culturas que lá se misturaram ao longo dos séculos,
o tropicalismo transfigurado na escrita cuja brutalidade
contém ou é a sua própria beleza apaziguadora, reafirmando
o valor da vida humana na sua infeliz condição. Em Rubem
Fonseca como que temos na mesma mente um Charles
Bukowski no seu melhor e sem vergonha alguma e um T. S.
Eliot na sua absoluta e estudada pose de seriedade, mas também
poeta e teorizador tanto da Tradição como do gozo artístico em
qualquer uma das suas facetas. A partir d’A Grande Arte e
Agosto que Rubem Fonseca se tornou num dos maiores
romancistas da nossa língua, Prémio Camões (2003) e candidato
anterior ao Nobel, finalmente a ser publicado em Portugal com
regularidade. Ainda há poucos dias foi homenageado na
Corrente d’Escritas da Póvoa de Varzim, com especial destaque
para o livro aqui em foco, Bufo & Spallanzani.
Como sempre na sua obra, acontece em Bufo & Spallanzani
um crime brutal, morte inexplicada e inesperada, mobilizando
de imediato o famoso detective Mandrake, de seu
nome Paulo Guedes, de meia idade e mais do que consciente
das suas próprias falhas e incumprimentos gerais, pouco
atento à aparência pessoal mas hiper-ligado a tudo o que se
passa em sua volta, calculista e calculador de olhos abertos
para o que der e vier — “não cabia a ele, policial, nenhum
julgamento de valor acerca da ilicitude do fato” — mesmo
dos mais improváveis personagens que pululam nas sua
páginas, todos em busca solitária de um compensador nicho
no paraíso infernal que é o Rio de Janeiro da modernidade,
o postal montanhoso contendo dentro de si toda a fealdade
de que somos — a primeira pessoa no plural é uma expressão
deliberada aqui, pois um texto romanesco ou poético a todos
nós se dirige, ou então não vale nada — capazes de ensaiar
e projectar nas outras vidas em volta, que existem sempre
entre a realidade e a ficção, fora e dentro da obra imaginada.
Apesar do que afirma sobre o seu distanciamento dos “factos”
que é levado a investigar, no fundo é um moralista cívico
(“o policial negligente está a um passo do cinismo. O cínico
a um passo da corrupção”) que dedica a sua vida a desmontar
as mais mortíferas redes e teias urdidas onde os infelizes
são apanhados, a virtude ou o acto assassino podendo vir
do mais baixo ao mais alto escalão social. É nessa abrangência
e tumulto vindo de qualquer quadrante profissional ou
hierárquico que tornam os romances do autor num expansivo
retrato da condição humana, por ele vista e vivida na sua
sociedade de contornos simultaneamente muito próprios mas
na qual, para além de geografia, cultura ou estação de vida,
nos podemos também ver reflectidos nos desejos e anseios,
na bondade e na perfídia projectadas na recriação imaginativa
destes outros mundos e afazeres.
Bufo & Spallanzani abre com a morte de Delfina Delamore,
de origem humilde mas casada com um dos mais ricos
empresários da cidade, com hipóteses de suicídio ou morte
às mãos do escritor de nome Gustavo Flávio que com ela
havia mantido uma relação amorosa e agora narra toda a
estória na primeira pessoa, ou então a mandado do marido
traído. A genialidade de Rubem Fonseca é tornar uma morte
na questão secundária enquanto a voz narrativa encena os
percursos de vida de todos os envolvidos na segunda investigação
e os que com ele partilham o mundo à superfície e
na cama. Poderá ser este o antigo formalismo da melhor
literatura policial, mas com Fonseca somos apresentados a
toda a tradição literária e artística através de citações (incluindo
música e artes plásticas) do Ocidente, o narrador
convocando uma lista imensa de nomes e obras cuja força
polissémica tanto esclarece como complica o que se torna
numa visão universalizada da história e a humanidade a
braços com os seus impulsos, vontades e medos contraditórios
a cada dia, o estatuto social de cada um parte determinante
do estado de alma nos subterrâneos em que existe e
opera todo o tipo de ilicitude, ou então na maior brincadeira
literária (“Como você sabe, não consigo escrever à mão,
como deveriam os escritores, segundo o idiota do Nabokov”).
Frase a frase, parágrafo a parágrafo, página a página
a prosa do autor é simultaneamente de uma viveza e
ponderação sem igual. O romance aqui é infinitamente mais
do que policial, como aliás Rubem Fonseca já tinha demonstrado
na obra-prima que é Agosto, todo ele em volta do
assassínio de um empresário durante os últimos dias e
eventual suicídio de Getúlio Vargas em 1954: literatura, política,
crime e sociedade num quadro negro onde por detrás
espreita, sempre, um mínimo de luz redentora. Creio não
ser possível a um leitor sério ler um livro de Fonseca sem
querer de imediato devorar toda a sua vasta obra — e ficar
logo à espera do que virá a seguir.
Felizmente, pela ocasião da sua recente passagem pela
Póvoa de Varzim, como já foi aqui referido, o autor mereceu
mais uma vez e muito justamente toda a atenção crítica no
nosso país, o JL lisboeta tendo dedicado uma das suas capas
e uma larga secção das suas páginas ao autor carioca. O
seu olhar nas fotos parece transmitir a dureza da sua cosmovisão,
mas não a leveza bela e significante das suas palavras,
muito menos o cidadão que se passeia serenamente nas ruas
do Rio, o cidadão profundamente atento à condição humana
nas mais diversas versões no seu e noutro qualquer país.
Rubem Fonseca sai ocasionalmente da ficção para a
escrita ensaística, e aí temos igualmente as reflexões — ou
mesmo teorização — da arte da escrita sem fronteiras do e
no nosso tempo, algumas das suas viagens e experiências
entre outros povos e línguas. Nos ensaios variados de O
Romance Morreu (a ironia é óbvia, vinda de quem o pratica
à grande escala) Rubem Fonseca começa logo por desmontar
o que de vez em quando anunciam os exaustos e
arrogantes, que já não tendo mais nada a oferecer à arte
assumem que o mundo desabou para todos.
“Muito antes de public
ar o meu primeiro livro — escreve
o autor — eu já ouvia dizer que o romance, a literatura de
ficção estavam mortos. Parece que a primeira morte teria
sido anunciada ainda em 1880 não obstante, como todos
sabem, Emily Dickinson, Tchekhov, Proust, Joyce, Kafka,
Maupassant, Henry James, o nosso Machado, Eça, Mallarmé,
as Bronte, Fernando Pessoa (um pouco mais tarde)
estivessem ativos naquela época”.
O romance não morreu, pois. Pelo contrário, a própria
obra de Rubem Fonseca continua a fazer parte de um
contínuo e dinâmico momento na ficção um pouco por toda
a parte, de que faz parte especial este Bufo & Spallanzani.
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Rubem Fonseca, Bufo & Spallanzani, Sextante Editora/Porto
Editora, Lda., 2011.
** Sobre o autor Vamberto Freitas,açoriano,natural da Ilha Terceira. Professor da Universidade dos Açores,crítico literário, ensaísta.