Moço, digo-te, dei a vida
não sei a quê, a quem,
soube-me a pouco, o engano
que muito tive que enganar
pra estar aqui, vivo, velho
de má saúde, sem ouro,
sem fé, sem tostão
Digo-te, casa sempre tive
e barco pra viajar e
fortuna pra buscar e vontade
de pelejar por um bem
que nunca encontrei
Que tudo isso sempre
se segue e se acredita
mas, ao fim, é este nada
que resulta, esta dúvida
pra deitar fora
Espojo de tanta batalha, moço,
dei a vida não sei a quê,
acreditei que à vida,
sem bandeiras pra espetar
em ninguém, nem em colinas,
minas, poços, pólos, mares,
em ninguém, moço,
como vês, acreditei em vão,
há bandeiras espetadas
em toda a parte
Só me resta o abrigo do céu,
o infinito, o sem nome, sem dono,
esta casa sem tecto, que
só a terra tomará conta de mim
e de ti, com todos os seus deuses
e poderes infinitésimos
Moço, repito, fosse eu monge,
sábio, servo ou escrava,
dei a vida não sei a quê, a quem
Rui Duarte Rodrigues, Com segredos e silêncios,
Angra do Heroísmo,IAC, 1994.
Rui Duarte Gaspar Rodrigues (1951-2004), jornalista, poeta, natural da cidade de Angra do Heroísmo,
ilha Terceira, onde residiu, trabalhou e faleceu.