Salim para sempre
Escritores costumam guardar a aspiração de, um dia, não se sabe se cedo ou tarde, se no auge do reconhecimento ou já no fim da vida, tornarem-se imortais em alguma academia, a estadual ou a brasileira. O sonho, se é de graça e legítimo, é ao menos trabalhoso: é preciso candidatar-se a uma cadeira cuja vacância foi motivada por morte, às vezes em período de luto e comoção; é preciso fazer campanha pessoalmente e por escrito, via correspondência ou de porta em porta, explícita ou veladamente, para convencer colegas de profissão pelos quais nem sempre se sente muita simpatia; é preciso torcer para que o processo eleitoral corra dentro das normas estabelecidas pela confraria e que o placar do pleito termine como prometido pelos eleitores.
Aí sim, depois deste périplo de gentilezas e de agruras, se tudo der certo e sair como o planejado, ser aclamado vencedor, ganhar textos laudatórios na imprensa, marcar a data da posse, preparar a festa, envergar o fardão, comparecer no horário, adentrar o salão nobre e ler um discurso retrospectivo inédito e de agradecimento sincero.
Entre nós, catarinenses, talvez o mais notório exemplo recente de determinação para alcançar esse objetivo tenha sido o de Oldemar Olsen Jr., “viking” chapecoense que disputou seis penosas eleições para enfim conquistar o seu merecido assento de imortal na Academia Catarinense de Letras (ACL). Na outra ponta, entre os que se recusam a sequer aventar a hipótese, certamente o mais conhecido é Salim Miguel, escritor nascido no Líbano e criado em Biguaçu que, desde a juventude, dedicou sua vida à divulgação da cultura da palavra escrita e da arte brasileira – no jornalismo, na literatura, no teatro, no cinema, na crítica e na política.
No entanto, a imortalidade pode ser consagrada por outras formas, para além da obviedade de que se o escritor perece, a obra permanece. Foi o que o cineasta Zeca Pires fez com o autor de A Voz Submersa, ao lançar Salim na Intimidade – Maktub (80 minutos), documentário que não tem a qualidade técnica dos longas-metragens de ficção do diretor – em especial na captação do som –, mas é simples, honesto, presta justíssima homenagem a seu protagonista e eterniza, de uma vez por todas, a grandeza de Salim no cenário literário nacional. Lançado em dezembro de 2012 em sessão especial na UFSC, em Florianópolis, o filme é um belo presente tanto para o autor – que acaba de completar 89 anos e ainda se recupera de um acidente doméstico que o meteu num coma de 18 dias – como para o leitor que admira a sua pessoa e a sua obra.
Narrado boa parte pelo próprio Salim, o documentário começou a ser gravado em 2004, quando ele completou 80 anos – há cenas da divertida festa de aniversário daquele ano –, e foi finalizado há poucos meses. A homenagem já começa na cena de abertura, que mostra Salim e Eglê Malheiros, sua esposa, amiga e companheira de décadas, chegando à sede da Academia Brasileira de Letras (ABL), na cidade do Rio de Janeiro. Lá, a eternidade de alguma forma recebia Salim de braços abertos pela primeira vez nestes últimos anos: era a cerimônia em que seria agraciado com o Prêmio Machado de Assis, a mais alta honraria das letras nacionais, pelo conjunto da obra.
A partir desse ápice, o filme convida Salim a falar sobre sua infância e juventude, a chegada dos Miguel ao Brasil – dramatizada e ficcionalizada no primeiro capítulo de Mare Nostrum, com o desembarque da família no cais da Praça Mauá –, a Biguaçu dos anos 1930, o colégio, o despertar da paixão pela literatura. O irmão de Salim, Sayde, é consultado, assim como filhos e o neto, que, por conta do ofício do pai/avô, quase nunca apareceram em reportagens e matérias jornalísticas.
Em Salim na Intimidade, porém, eles se mostram não só como familiares, mas também como leitores que expõem suas preferências na obra do pai e até alguma análise crítica. Sua contribuição é um dos pontos altos do roteiro, assinado por Pires e Gustavo Remor Moritz. Paulo Sérgio Miguel, por exemplo, revela que seu pai jogava futebol muito bem, era o “fura-rede” de Biguaçu, e chegou a ser convidado para se juntar ao plantel do Avaí, o que não aconteceu – para sorte dos leitores. Aparecem também fotos do pai e da mãe de Salim, junto com um riquíssimo material de época, e vídeos exclusivos gravados pela família na casa onde o escritor teria nascido, no Líbano.
Alguns dos principais feitos de Salim Miguel são relembrados no documentário: do fato de ele ter passado bom tempo da sua época de meninice lendo em voz alta para um livreiro cego de Biguaçu, fato pitoresco que tem fumos de criação fantástica de Gabriel García Márquez, até o sucesso Brasil afora de Mare Nostrum, passando pela criação do Círculo de Arte Moderna e do Grupo Sul, o êxito da revista literária SUL, o trabalho como jornalista para “n” veículos, a prisão – e o drama familiar desencadeado, abordado com cuidado e sensibilidade –, o incêndio criminoso da livraria Anita Garibaldi, da qual era sócio no Centro de Florianópolis, e, claro, sua labuta como escritor.
Nessa seara, dão depoimento gente do gabarito do professor Carlos Appel, dos escritores Flávio José Cardozo e Silveira de Souza, do crítico Antonio Hohlfeldt, o ex-presidente da ABL Cícero Sandroni, o jornalista Laudelino José Sardá – do passado, são evocadas por fotografia personalidades com quem Salim conviveu: Guido Wilmar Sassi, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, José Saramago, entre outros grandes nomes das rodas boêmias e dos círculos literários de todo o Brasil.
Outro ponto alto do filme é a relação entre Salim e Eglê, o casal “literário” mais famoso da história da literatura catarinense. E a cena mais significativa sobre esse assunto, quiçá do filme, é protagonizada por ambos, verdadeira gema que Pires aproveitou muito bem. É quando ela conta que conheceu ele em 1945, na sede do comitê municipal do Partido Comunista – o que ele contesta sem pestanejar, dizendo que, “na verdade”, foi em 1947, na montagem teatral que o Grupo Sul inventou para angariar recursos para lançar a revista que viria a se tornar um marco cultural. “Eu acho, Salim, que tu me conhecesse muito depois que eu te conheci”, protesta ela. E então eles compartilham a gargalhada mais cúmplice e amorosa de que se tem notícia.
Os secretários de Educação de Florianópolis, Rodolfo Pinto da Luz, que entende do riscado, e estadual, Eduardo Deschamps, que não sei até hoje do que entende, bem poderiam fazer Salim na Intimidade – Maktub ser adotado permanentemente nos colégios da Capital e de todo o Estado – assim como os livros, claro. Seria mais um tipo de imortalidade de que, tenho certeza, Salim não reclamaria – nem Eglê faria oposição.
* Jornalista, cronista e editor do portal DeOlhoNaIlha foi convidado a escrever sobre o filme