SANGUE
Mário T Cabral, 15 de Maio AD 2016
O sangue é um rio dentro do nosso corpo e nesse rio navegam barcos carregados de informações provindas do universo inteiro, desde que o universo é universo, e antes de o universo ser universo e depois de o universo deixar de o ser; porque, do mesmo modo que agora se atualizam dados ancestrais, é previsível que as sementes do futuro já velejem pelas nossas veias.
É assim que o nosso corpo deixa de estar isolado num deserto árido e entra na rota festiva do que está a acontecer no presente eterno. Temos dentro das nossas veias os remos do princípio do universo, à imagem do Big Bang, que os radares captam, e vamos estar no fim do universo, levados por este fluido que não nos atravessa em vão. Há um burburinho de feira dentro do nosso corpo, como não ouvir tal fogo de artifício?! Se apertarmos o pulso, torna-se inegável esta peregrinação redonda.
Já sabemos interpretar muitos destes registos, através de análises químicas, marcadores tumorais e exames análogos; mas a pedra de Roseta sanguínea está longe de ser descodificada, pelo menos por estes processos científicos.
Quanto à linguagem, vamos dizer, metonímica, o nosso conhecimento do sangue é antiquíssimo e de grande profundidade, rigor e exatidão. “Sangue” é uma das metonímias perfeitas, como em: “O meu filho é do meu sangue”.
Ninguém conclui, daqui, que os filhos têm o mesmo tipo de sangue dos pais, portanto, não se trata de linguagem conceptual. No entanto, não é uma metáfora, que, logo à partida, pede para ser tomada como um “faz de conta”, como em: “O sangue é um rio dentro do nosso corpo”.
O pai pode ser O- e o filho A+ e amarem-se profundamente. Mais: pai e filho podem não se dar, mas o normal é não violarem o tabu do sangue (“Absalão, Absalão, meu filho!”). Não há nenhum mistério aqui. Qualquer pessoa compreende o alcance da expressão: “a voz do sangue”, assim como os pactos de sangue sempre foram códigos de honra deveras objetivos, sem qualquer dimensão poética.
Nosso Senhor Jesus Cristo deu-nos a beber o Seu próprio Sangue. Como é Deus incarnado, ficámos com o Eterno dentro do nosso próprio corpo. Já tínhamos o mesmo ferro que há por este universo inteiro, e o mesmo oxigénio; mas, agora, estamos ligados à própria divindade.
Mas assim somos nós: temos medo de ir levantar as nossas análises, não venham a revelar que temos cancro. Não abrimos o envelope. Receamos o sangue como quem foge duma cartomante. O sangue torna-se uma espécie de traidor. Porém, o que está lá, está lá, não depende da nossa vontade ou capricho. O sangue é uma condição.
Do mesmo modo, podemos não estar a tomar a devida atenção ao que está gravado na memória deste rio, embora recordemos, de forma baça, eventos de antes de termos nascido, escritos ou segredados por outrem. Talvez, um destes dias, haja um marcador químico para a anamnese.
Tudo isto nos é absolutamente familiar, não há motivo para qualquer surpresa. Por exemplo: dizemos que a neta é a cópia viva da avó, que ela não chegou a conhecer, isto nos gostos e nos comportamentos, que não apenas na fisionomia – por vezes, aliás, sem a parecença fisionómica, como no caso de Absalão. Como os animais, que sabem o que fazer, por instinto, nós, por maioria de razão, deveríamos lembrar-nos do Paraíso.
O sangue pode ser dado. Também se pode doar um rim, mas fica-se sem ele, enquanto que o sangue que é dado volta a ser reposto. Lá vai ele circular dentro de outro corpo, provando ser um rio transcendente. Nunca chegou a ser nosso, vai permitir a vida de outro corpo, como veio permitir a nossa.