É conhecida a classificação dos picos da excelência humana: o génio, no campo natural; o herói, na esfera social; e o santo, no que respeita a religião.
Os três representam a desmesura que a virtude clássica da temperança não permite; veja-se Aristóteles: nada em excesso, tudo na justa medida. O génio esgaça as regras da convenção estética até quase à beira do grotesco; o herói contradiz a diplomacia; e o santo avança em chamas pelo infinito dentro, perdendo-se atrás da voz que ouve chamar por si (O Apocalipse é claro: «Conheço as tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente» – Ap 3, 15).
Portanto, não está certo confundir “homem bom” com “homem santo”: ser santo é mais, muito mais do que homem bom. Este não carece da Transcendência Pessoal, que aquele exige. Daqui se conclui que nem todas as religiões têm santos, que é outro equívoco recorrente.
Haja em vista o budismo; trata-se duma religião sem Deus, logo sem santos. A sua crença básica reside na convicção de que o mundo físico é uma ilusão (maya), da qual nos devemos libertar, procurando esvaziar a mente até atingir o Nada (nirvana). Este processo exige uma vida de exercícios de alta escola, que não está ao alcance de qualquer um. Porém, daqui não se pode concluir que o “iluminado” (buda) seja um santo.
A confusão entre o monge oriental e o santo está, por certo, relacionada com a oração, já que a vida prática de ambos é deveras antagónica: para as religiões místicas, de cariz oriental, a existência espácio-temporal é uma aparência, da qual devemos escapar, como de uma doença; ao invés, as religiões monoteístas – mesmo sem especificar o Cristianismo – começam com a crença num Deus criador, que garante desde o início que tudo é belo e bom (Gn 1). Ora, o santo, ao contrário do monge oriental, sente-se impelido a combater o mal neste mundo, por representar uma decadência do acto criador. As obras de misericórdia caracterizam-no sobremaneira.
Mas uma análise mais cuidada das religiões revela tipos diferentes de oração. As religiões primitivas, porque identificam o sagrado com a natureza (panteísmo: tudo é uma coisa só), tomam a vida particular, e sobretudo a consciência e a liberdade, por arrogância que será castigada, na devida altura – veja-se o fragmento de Anaximandro: «Porque as coisas têm de pagar umas às outras castigo e pena, conforme a sentença do tempo.» Daí que a oração seja um transe ritualístico, marcado pela dança e ajudado pelas drogas, que visam a saída de si. A cultura pós-moderna está matizada desta força inconsciente e freudiana, que leva, inevitavelmente, à violência (releia-se As Bacantes, de Eurípides).
A oração das religiões místicas tem alguma semelhança com o tipo anterior, se bem que estas procurem fugir ao eterno retorno, que aquelas sublinham. Ambas visam a anulação do Eu, embora as primeiras apostem nas metamorfoses infinitas da matéria e da vida, enquanto as segundas se esforcem por sair da roda das reencarnações. Há que referir, também, o refinado trabalho intelectual da oração mística, quando comparado com a outra. Não se trata de um abandono à inconsciência, outrossim de um trabalho de “iluminação” racional e abstracto, na senda do Vazio, do Nada. Chama-se “oração activa” porque é o orante que desenvolve todo o esforço, dado que não há mais ninguém na oração.
Tudo isto para chegar à “oração passiva”, característica das religiões monoteístas. Aqui, o orante não está sozinho; o ponto de partida, agora, é que há outra Pessoa transcendente, com a qual o ser humano pode entrar em contacto – e mais do que uma, no caso do Cristianismo, que se baseia na Santíssima Trindade e reza a Nossa Senhora e aos anjos e pelos santos e fiéis defuntos. De toda esta multidão, o menos importante será, talvez, o orante. Este não precisa de fazer nenhuma espécie de ginástica elaborada ou possuir técnicas eruditas e exigentes; ou melhor, mesmo que tenha tudo isto, nada garante que o encontro exigido pela oração funcione porque do lado de lá estão Pessoas com vontade própria e superiores a nós. É por isso que a gnose sempre foi considerada uma heresia, pois que supunha, entre outras confusões, que o caminho da ascese era exclusivo dos filósofos e doutores. Era para os pastorinhos de Fátima não serem santos…
O santo, pois, não está sozinho, nunca está sozinho, desde o início; e não quer desaparecer – não se confunda a “mortificação” cristã com o “aniquilamento” das outras religiões: se dividirmos a mente humana em inconsciente, ego, razão e espírito, compreendemos que o que morre na “mortificação” é o inconsciente e o ego; e mesmo a razão, nos seus limites, que impedem a relação amorosa imprescindível à santidade. O santo é aquele que ama, é sobretudo aquele que ama melhor. O mártir, quiçá o expoente da santidade, não é um suicida, mas aquele que melhor imita os desígnios de Deus-Pai, exemplificados pela Incarnação do Seu Filho: «Sede santos, porque Eu Sou Santo» (Lv 11, 44).
Existem muitos estilos de santidade, que podem simplificar-se em dois conjuntos, de acordo com o Mandamento Novo: «Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo» (Mc 12, 29-31; Mt 22, 37-40), exemplificado na visita que Nosso Senhor faz às suas amigas Marta e Maria (Lc 10, 38-42): há os santos da contemplação e os santos da acção, sendo que não são estilos exclusivos. Aliás, não é possível amar a Deus e ignorar as criaturas, em especial as humanas, dado que Deus é o Criador de tudo; e pode-se ser uma pessoa boa e justa, com sentimentos humanitários muito desenvolvidos, mesmo sem acreditar em Deus… mas não se pode ser santo desta maneira. Trata-se de tendências, ou inclinações, que não sobrevivem uma longe da outra.
Usa-se a expressão “cheiro de santidade” para referir o facto de os santos serem notados. É praticamente impossível, mesmo para um ateu, recusar a sublime desmesura de São Francisco de Assis e, no nosso tempo, de Madre Teresa de Calcutá, entre um sem número de exemplos. São vidas que levam a admiração ao silêncio. Eles são pessoas como nós, mas ao pé deles parecemos fracos, doentes, sem brilho (sanctus relaciona-se, pela etimologia, com “saudável”, “pujante”, “solar”). Se eles conseguiram, é possível conseguir-se; se eles conseguiram, é porque o caminho leva, efectivamente, ao Céu. É daqui que nasce a devoção. O devoto confirma que o santo nunca está sozinho, jamais poderá estar: para ser santo, tem de supor a Graça, que é o movimento de Deus em direcção à criatura; e sendo santo gera o amor nos seus irmãos, que se querem aproximar da sua excelência.
Os protestantes não rezam aos santos, ao contrário dos católicos, dos ortodoxos e dos anglicanos. Numa igreja protestante não há altares para os santos. Mas os católicos, ortodoxos e anglicanos acreditam na “comunhão dos santos”, o que significa que nos salvamos em conjunto, que nos podemos ajudar todos no acto da conversão e salvação da alma. Uma devoção específica a um santo determinado é, bem vistas as coisas, um passo na direcção do auto-reconhecimento e da auto-determinação e, neste sentido, um amadurecimento. Sou parecido com ele, tenho inclinações naturais muito próximas das dele… e ele foi como eu e há-de, por certo, compreender-me melhor e ajudar-me. Ele é o meu super-ego, por assim dizer.
O devoto sabe que o santo não é Deus; ele recorre ao santo precisamente por ele ser pessoa humana, por ele significar a possibilidade de atingir o desiderato de Deus que, a priori, parece impossível. Desta forma, o santo é aliado da fé e da esperança. O devoto sabe que custa muito ser santo e admite o fracasso, ou seja, a hipótese de falhar a
imitação. Voltando aos exemplos anteriores: a irmã Pobreza de Francisco é uma fasquia elevadíssima; e a caridade de Madre Teresa de Calcutá exige uma coragem sobre-humana. No entanto, manter estes gigantes no horizonte orienta os passos de quem ainda atravessa este “vale de lágrimas” em direcção à Terra Prometida. Os franciscanos têm na família muitos reis e poderosos que não abandonaram as suas fortunas e os seus deveres de mandar… mas, com os olhos postos no Poverello, inventaram hospitais e misericórdias e o bodo do Espírito-Santo, etc. Não chegar ao fim não quer dizer fazer um percurso ao avesso. Enquanto eles estiverem a acenar do cimo da montanha, os dias ganham sentido, em especial os dolorosos.
Mário T Cabral, ofs, Casa das Tramóias, 4 de Outubro, AD 2011 – Dia de São Francisco de Assis
Mário Cabral Natural da ilha Terceira, Açores (1963), licencia-se em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1986), onde ultima o Doutoramento sob a orientação do Professor Doutor Paulo Borges: Via Sapientiæ: da Filosofia à Santidade – a Inspiração Cristã do Pensamento Contemporâneo Português a partir de Delfim Santos, Teixeira de Pascoaes e Agostinho da Silva (Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 2009)
Para além das publicações científicas, tem publicadas as seguintes obras de Literatura: Histórias duma Terra Cristã (Crónicas, Horta: 1995); O Meu Livro de Receitas (Poesia, Guimarães: Pedra Formosa, 2000), O Livro das Configurações (Romance, Porto: Campo das Letras, 2001) e O Acidente (Romance, Porto: Campo das Letras, 2005).
Está traduzido para castelhano (Ventana a la Nueva Poesía Portuguesa, México: Desierto, 2001) e para Inglês (On a Leaf of Blue: Bilingual Anthology of Azorean Contemporary Poetry, Berkeley: Institute of Governmental Studies Press – University of Califórnia, Berkeley, 2003).
Mário Cabral também é pintor, com exposições feitas em Lisboa e na Terceira.
O seu livro – O Acidente – foi distinguido com o Prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2005/2006 (Porto: Campo das Letras).