São Jorge, a escarpada ilha
O jorgense Francisco Lacerda (1869-1934), compositor e maestro de renome internacional, nascido na freguesia da Ribeira Seca, em carta destinada a seu pai, escrevia em 1921: “Ou Paris, ou Fragueira”. E a Fragueira, pequena Fajã bem perto da sua terra natal, era o refúgio do músico no tempo de férias na ilha.
As largas dezenas de Fajãs são a imagem de marca da ilha de São Jorge. Estas línguas de terra, superfícies planas que se prolongam pelo mar e provenientes de abatimentos de falésias, estendem-se pelos dois lados da ilha. O acesso a elas faz-se por via terrestre ou por via marítima. E quem lá chega sabe que está numa espécie de paraíso.
Com efeito, a tranquilidade e a espetacular beleza das Fajãs constituem um constante apelo para viajantes e turistas. Falo por mim, que sou viajante, não turista. E, nesta qualidade, se eu tivesse que selecionar os três lugares mais fantásticos dos Açores, eu diria: a Furna do Enxofre, na ilha Graciosa; o Poço da Alagoinha, na ilha das Flores; e a Caldeira de Santo Cristo, na ilha de S. Jorge. Aliás, escrevi em tempos um poema em que dizia que visitar a referida Fajã (que é agora Reserva Natural e Área Ecológica Especial) era estar mais perto de Deus…
Subjetividades à parte, o que é facto é que as Fajãs albergam importantes espécies de fauna e flora, e são lugares únicos e mágicos, com algumas particularidades. Por exemplo: a Fajã dos Vimes é o único local dos Açores onde se faz plantação de café; a lagoa da Caldeira de Santo Cristo é o único sítio do arquipélago onde se reproduzem amêijoas.
Sempre recomendei a quem visita os Açores uma aproximação às ilhas feita por mar. No caso de São Jorge vale mesmo a pena, nem que seja para ver as quedas de água que tombam do alto da costa e se precipitam sobre o mar ou nas suas míticas Fajãs.
Ilha comprida e estreita, bastante acidentada pela imponência natural das suas encostas formadas por arribas abruptas, São Jorge é atravessada por uma cordilheira que atinge a sua maior altitude no Pico da Esperança, com 1053 metros.
A vegetação é exuberante e o cenário impressiona. De São Jorge vemos o Pico, o Faial, a Graciosa e a Terceira. Recordo que foi no contexto das suas impressões sobre o Pico com São Jorge, que o escritor Raul Brandão produziu, em 1924, a célebre frase que é hoje abundantemente citada: “Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente”.
As vilas de Velas e Calheta são sedes de concelho, com suas casas sóbrias e solarengas, muitas com cantaria em basalto. Ruas limpas e luminosas. A solenidade das igrejas. A nobreza dos Paços de Concelho. Saguões aprazíveis. Cafés de ver o mar. Um convite à quietação e ao repouso.
Mas não nos deixemos iludir com esta pacatez. O historial jorgense é de resistência e de luta pela sobrevivência: a ilha sobreviveu à pilhagem de piratas e corsários; aos violentos tremores de terra de 1580, 1757, 1964 e 1980; às crises de alimentos e aos maus anos de colheitas; às erupções vulcânicas de 28 de abril de 1780 (Vulcão da Queimada) e de 1 de março de 1808 (Vulcão da Urzelina). A velha torre da Urzelina lá está, permanecendo incólume, símbolo derradeiro da antiga igreja que ficou completamente soterrada pela corrente de lava que desceu da montanha até ao mar.
Percorro a ilha toda que é escarpada como a minha emoção. Enquanto conduzo, vou ouvindo os “Tributo”, um grupo musical jorgense de inegável qualidade. Aliás, São Jorge é uma das ilhas mais musicais dos Açores. Basta lembrar que existem aqui 16 filarmónicas para uma população de pouco mais de 9.000 habitantes.
Impressionante é também o número de igrejas e ermidas e a riqueza do património religioso. Visito aquela que considero a igreja mais bela dos Açores: a de Santa Bárbara, nas Manadas, e onde podemos apreciar o barroco em todo o seu esplendor.
De freguesia em freguesia, vou convivendo com pessoas que têm apelidos tais como Silveira, Soares, Teixeira, Brasil, Bettencourt, entre outros. Os jorgenses, modelados pelo isolamento e pela dureza da ilha, são pessoas de uma extrema simpatia que falam com o arcaico sotaque das vogais abertas. Reparo que as mulheres de São Jorge são literalmente belas, havendo em muitas delas traços de longínqua influência flamenga. Aliás, um dos primeiros povoadores da ilha foi Wilhem Van der Hage, flamengo cujo nome se aportuguesaria em Guilherme da Silveira e que, no século XV, se fixou no Topo, aí fazendo desenvolver uma comunidade flamenga, a que se juntaram famílias vindas da Terceira e de vários pontos do continente português. Van der Hage arroteou terras, distribuiu gado, fez pastagens e introduziu o fabrico de queijo.
Mais de cinco séculos depois, São Jorge continua a produzir o afamado “queijo da ilha”, comprovadamente produto de altíssima qualidade pelos prémios nacionais e internacionais recebidos. Trata-se de um queijo artesanal, fabricado com leite de vaca, inteiro e cru, coagulado por coalho animal e curado durante um mínimo de 3 meses, técnica cuja origem aponta precisamente para uma influência flamenga.
Um outro ex-libris de São Jorge são as suas famosas e lindíssimas colchas, laboriosamente realizadas em teares de madeira, recorrendo-se a técnicas ancestrais. Para mim, uma colcha destas será sempre um poema bordado à mão…
No que às festividades diz respeito, São Jorge é a única ilha açoriana que apresenta, nos arraiais do Domingo do Espírito Santo e da Trindade, a figura secular do “Cavaleiro do Espírito Santo”, ornamentado com vistosas insígnias e levando na mão uma “vara”, tendo como função a de distribuir pelos irmãos do Divino o prato do “doce” tal como o faziam os seus antepassados.
A literatura de viagem tem vindo a dar nomes singulares a São Jorge: “ilha trágica” (Raul Brandão), “enorme dragão marinho” (Vitorino Nemésio), “o sáurio que dorme” (João de Melo), “a bela adormecida” (Onésimo Teotónio Almeida), etc.
Para mim, São Jorge é, ainda e sempre, a poesia das Fajãs e a beleza áspera de montanhas e falésias.
Victor Rui Dores