Passados 12 anos a partida de Emanuel Felix ainda é lembrada com muita saudade por seus amigos e admiradores.
Mesmo ciente de que cultivou igualmente a crônica e o ensaio e que fez com propriedade a crítica literária e de artes plásticas é na poesia que Emanuel Félix faz fluir a emoção com suavidade na magia do olhar. Sem contudo, não deixar de oferecer uma pitada de ironia e humor na palavra frontal,sábia, presente, rica e plena como no "Pedra-Poema para Henry Moore" ou no belíssimo“Five o`clock tear”,o desenho infinitamente triste da mulher,uma interface com o poema “Five o`clock tea” de Vitorino Nemésio (abaixo transcrito). “Uma poesia que busca nas palavras entender e dar a entender o sentido da vida”, afirma Fátima Freitas Morna (2003: 20).
Novamente, reapresento o "post" feito em sua memória e assinado por dois grandes escritores açorianos e que privaram da sua amizade e convívio literário. Refiro-me à Onésimo Teotónio Almeida e Urbano Bettencourt. Antes de mais nada,deixo a palavra do poeta repousar neste espaço como alimento d’alma.
Desta forma,quero de maneira especial reverenciar o poeta e lembrar os doze anos de sua ausência assinalados no dia de ontem, 14 de fevereiro de 2016,dia de São Valentim.
Morreu o poeta, mas a sua voz não emudeceu. Sua poesia perfeita, sua obra única e inesquecível permanecerá para sempre, como um incomensurável legado da criação poética açoriana.
I – A palavra do Poeta…
FIVE O’CLOCK TEAR *
Coisa tão triste aqui esta mulher
com seus dedos pousados no deserto dos joelhos
com seus olhos voando devagar sobre a mesa
para pousar no talher
Coisa mais triste o seu vaivém macio
p’ra não amachucar uma invisível flora
que cresce na penumbra
dos velhos corredores desta casa onde mora
Que triste o seu entrar de novo nesta sala
que triste a sua chávena
e o gesto de pegá-la
E que triste e que triste a cadeira amarela
de onde se ergue um sossego um sossego infinito
que é apenas de vê-la
e por isso esquisito
E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos
seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado
o álbum a mesinha as manchas dos retratos
E que infinitamente triste triste
o selo do silêncio
do silêncio colado ao papel das paredes
da sala digo cela
em que comigo a vedes
Mas que infinitamente ainda mais triste triste
a chávena pousada
e o olhar confortando uma flor já esquecida
do sol
do ar
lá de fora
(da vida)
numa jarra parada
EMANUEL FÉLIX
(in "A Palavra O Açoite", 1977)
II – A palavra dos AMIGOS…na reverência e admiração da sua obra poética e literária e na mais profunda comunhão fraterna.
Emanuel Félix, não mais connosco
Apanhado de surpresa, como todos os amigos e admiradores, pela notícia da morte do poeta Emanuel Félix, as palavras recusam-se. O silêncio vence. As imagens saudosas da sua presença veneranda (as cãs onduladas que ele cultivava davam-lhe esse ar de sage) ficam e ficarão connosco para sempre.
Socorro-me assim de dois faxes que lhe enviei aquando de homenagens públicas que lhe promoveram, primeiro a Casa dos Açores de Lisboa, e depois a Câmara Municipal de Angra. Aí ficam para ajudar a lembrança do Emanuel entre aqueles que o estimavam e continuarão a saborear a sua poesia, embora nunca mais possam ouvir da boca dele as histórias que só ele sabia contar:
Providence, 24 de Outubro de 2002
Meu mui caro Emanuel:
O nosso comum amigo Vasco Pereira da Costa teve o gesto simpático de me contactar a perguntar se não quereria enviar-te uma mensagem. Ele já me havia convidado mesmo a estar presente nesta tão merecida homenagem mas achei que, para falar da tua obra, havia gente muito melhor qualificada do que eu. E porque sei do naco capaz de leitores teus que isso exactamente aí fará, resolvi aproveitar esta oportunidade para juntar, ao desfile de presentes que te entregarão hoje em forma de caixas de adjectivos elogiosos pela tua obra poética e literária, mais um sobre outra das tuas facetas: a de contador de histórias.
És o Wagner deles. Usas todos os ingredientes ao dispor dos teus talentos artísticos e coloca-os ao serviço dessa tua arte de contar. As tuas histórias açorianas (sobretudo as de S. Jorge, mas não só) são primorosas, a começar pelo que elas reflectem de olhar penetrante no universo cultural das pessoas e na sua humanidade. Depois, usando doses qb de descrições, àpartes, traços caricaturais, ironia, sagacidade, empatia, olho fotográfico, sentido de pormenor e timing narrativo, tu manténs-nos suspensos no poder encantatório da tua palavra; mesmo quando todos nós já conhecemos o desenlace da história e te pedimos que no-la contes de novo porque, por mais divertida que seja a tirada final, é a tua arte de hipnotizador pela palavra que nos segura deliciados a ouvir-te. É no modo de contar que está a força delas, que o mesmo é dizer: é do artista que dimana a sua força.
As tuas estórias reúnem o poeta, o etnógrafo, o cronista, o esteta, invólucro desse teu fundo de pessoa de uma humanidade que sabe descobrir à sua volta o olhar inteligente dos outros, mesmo se ele surge disfarçado da maior simplicidade.
As tuas histórias são poemas. Se não podem estar escritas, é uma pena enorme não estarem todas videogravadas porque só o filme consegue transcrevê-las quase na íntegra.
Vai um grande abraço desta outra margem do rio Atlântico.
O.
O outro fax é datado de 15 de Maio de 2003:
Meu caríssimo Poeta:
Angra deu-te a chave da cidade. Agradecerás muitíssimo, eu sei, como humildemente agradeces sempre tudo o que te fazem, por pouco que seja. Mas tu não precisavas. Viveste sempre bem dentro dela. Há anos que lhe corres nas veias, essas ruas onde semeias palavras e histórias que contas como ninguém.
Usa a chave que te deram para fechares no íntimo dessa bela cidade a tradição magnífica de se misturar poemas e conversas nas ruas para que ela não se perca nas águas (e marinas) da globalização.
Daqui de Providence, o meu abraço fraterno e de imensa e antiga admiração.
O abraço vai e estereofónico: é meu e da Leonor.
O.
Aqui fica, Emanuel, esta five o’clock tear. Todos sabemos que morte é mais do que a viagem possível, mas os teus amigos queriam, interpretando à letra o significado do teu nome, que ficasses connosco o máximo de tempo possível.
Onésimo Teotónio Almeida
Professor e escritor
Brown University, Providence, RI, USA
Providence,15 de Fevereiro de 2004
Emanuel Félix a palavra exacta (*)
Em 2003,Emanuel Félix publicou 121 Poemas Escolhidos(1954-1997).
A coletânea é duplamente significativa:por situar-se no âmbito dos seus 50 anos de vida literária e ainda por resultar de uma seleção feita pelo poeta,traduzindo um olhar (auto)crítico,inseparável,porém, da relação afectuosa que um autor mantém com os seus textos. E tornou-se agora uma espécie de testamento poético e estético,onde o leitor encontrará os poemas que fizeram dele um grande poeta da língua portuguesa,embora sem se deixar armardilhar pelos seus modismos literários.
Escrevendo nos Açores e partindo deles para um diálogo com diferentes linguagens artísticas (a pintura, a escultura) e com diferentes culturas e poéticas, da americana à chinesa e à japonesa,por exemplo,Emanuel Félix deixou-nos uma poesia construída com um imenso rigor verbal e de contenção emotiva,em que a palavra é constantemente vigiada,depurada de excrecências e "ruídos",para reduzir o poema a um núcleo essencial em que o sentido ultimo do mundo pode,finalmente,desvelar-se em plenitude perante o leitor,como uma verdadeira revelação. Isto ajudará a explicar que a (só aparente) simplicidade da poesia de Félix seja percorrida por uma sabedoria muito mais antiga que a sua própria idade e que a cada momento recoloca o homem no universo, a começar pelo mundo imediato, quotidiano.
O compromisso poético e cívico de E.Félix.com a palavra e com o seu tempo, mereceu-lhe o respeito e admiração das gerações mais novas,que lhe devem,por sua vez,o gesto de uma amizade generosa e desinteressada.
A melhor homenagem ao poeta é lê-lo. E, nos condicionalismos do espaço disponível,aqui deixo o início de um poema seu: "Os mortos como as sementes/são enterradas./Penetram/ a dimensão só a eles acessível/atraídos pelo mistério do renascimento/e da fertilidade sem tréguas.
Urbano Bettencourt
Professor, escritor
Nota: Texto enviado por e-mail, em 18 /2/ 2004;está publicado no Jornal Açoriano Oriental,edição de 16/2/2004.