Apesar do frio nada que uma japona não resolva, agasalho de lã grossa, feitio de jaquetão , convido o leitor a uma rubiácea escaldante e liquefeita ali na esquina mais democrática da cidade.
O Senadinho. Ainda é o plenário mais “ficha limpa” da cidade, onde se encontram, diariamente, alguns velhos varões de honestidade a toda prova. Pena que as velhas instalações do “Ponto Chic” estejam reduzidas a uma portinha, a freguesia sequer encosta a barriga no balcão. Mas um cafezinho escaldante, com essa “friash”, é quase tão aconchegante quanto seio de mãe. Se o antigo plenário perdeu conforto e imponência, pelo menos a esquina ainda tem um “café” a oferecer.
O que diriam Eça de Queirós e Machado de Assis a respeito de uma cidade sem “esquina”? De qual púlpito o Conselheiro Acácio pronunciaria suas platitudes? De qual mirante Brás Cubas faria a propaganda de seu remédio miraculoso, o emplastro anti-hipocondríaco?
O que diria o poeta Fernando Pessoa, do alto do seu chapéu coco, seu pince-nez, seu bigode circunflexo e perplexo? O poeta precisava do café “A Brasileira”, no Chiado lisboeta, para comandar uma “bica” ao balcão e, uma vez ou outra, deixar-se fotografar para a noiva platônica, Ofélia, em autêntico “Flagrante Delitro”, segurando uma demi-pression, chope de colarinho baixo.
Além da rubiácea, que outra infusão estimulante rolava das bicas do “Ponto Chic”? Ora, o botequim era o próprio eletroencefalógrafo da Ilha, o coração social da arte de prosear, o verdadeiro e inesquecível parlatório da Felipe.
Ali se exercitavam, todos os dias, a voz pública, o alter ego, o murmúrio, o escândalo, o boato, a bisbilhotice, a intriga, o enredo, o evangelho, a piada, a notícia sensacional e a fofoca em estado puro. Todos os dias, ao badalar das 12 horas do sino da Catedral, instalava-se no Senadinho uma espécie de Comissão Parlamentar de Inquérito, uma instituição acima de qualquer suspeita e quaisquer mensalões.
Ali corriam, velozes, a notícia veraz, a léria, o “bom ato” e o “boato”, em suas várias formas. O disse-que-disse, o mexerico, o segredo de Polichinelo, o “telegrama”, o necrológio – já com o elogio do morto. E não faltavam as resenhas galantes, o placar das alcovas, com as possíveis “falhas” dos galanteadores.
O balcão do Senadinho disseminava o boato, sem nunca desprezar “o fato” – e todas as suas variáveis e versões, inclusive a “da verdade”. Jamais um dos seus membros precisou recorrer a um “habeas-corpus” para libertar a própria língua.
A portinha do café guarda, ao menos, a boa memória de Alcides Ferreira, o mais famoso da famosa esquina, o senador honorário que, como ninguém, encarnou o “jeito manezinho de ser e de viver”, na liderança da bancada em cujo mandato pulsava o coração da cidade.
Perguntado, certa vez, como identificava um “manezinho urbano”, o senador Alcides Ferreira assumiu um ar professoral, até cunhar verdadeiro tratado antropológico sobre este ser tão característico da Ilha:
– É um “ladino” que toma cafezinho no Ponto Chic e fala mal até de si mesmo…
Vocês acham que um “Ficha Suja” sobreviveria, incólume, ao fio da língua daquela esquina, último bastião da moral e dos bons costumes?
Nota: imagem do Senadinho, Carlos Damião