A Ilha da São Miguel provoca um sentimento de embriaguez ante a beleza exuberante da paisagem, uma profusão de tons de verde das elegantes criptomérias, do verde-forte do australiano incenso, da suavidade das acácias, do perfume doce das conteiras debruçadas nas ribeiras. Sou tomada por assalto por esta sinfonia de cores, de sons, de cheiros. O cenário me fascina e quando aí estou me perco contemplando o mar azul profundo em contraste com a negra areia e a rocha vulcânica tal qual uma esfinge com rosto de cão, o verde-garrafa dos campos lavrados e as pastagens povoadas de gado preto e branco entrecortadas por muros de pedras serpenteados por um colar de hortênsias iluminadas pelo sol, em meia-tarde de primavera. Imagens inesquecíveis e para se guardar…
Gosto de estar em Ponta Delgada de percorrer suas ruas, sem pressa, curtindo o simpático burburinho de seu comércio; de me sentar, no fim de tarde, numa esplanada lá praia do Pópulo e partilhar do convívio de amigos, sentindo o toque da brisa suave, de entrar Ilha adentro até o Nordeste por caminhos paradisíacos em que o silêncio da estrada quase deserta é rompido pelo rumor do vento na folhagem e o som cristalino da água da fonte. Estas são razões mais do que suficientes para querer regressar à Ilha de São Miguel e sempre vale a pena voltar.
Ponta Delgada é uma cidade encantadora. Nesta altura do ano está impregnada de intensa religiosidade por causa dos festejos em honra do Senhor Santo Cristo dos Milagres cuja celebração aconteceu entre os dias 15 e 17 de maio.
Uma festa que não se manifesta deste lado do Atlântico.
Embora, temos 260 anos de uma história entrelaçada por uma memória coletiva tecida de geração a geração, cujo legado sobrevive numa herança cultural forte e significativa no litoral catarinense, a Festa do Senhor Santo Cristo dos Milagres não é celebrada e muito pouco conhecida. Pois, se os nossos ilhéus açorianos chegaram ao Sul do Brasil no século XVIII, entre 1748 e 1756, e desde 1698, conforme documenta o escritor Daniel de Sá, se realiza a procissão na Ilha de São Miguel, por qual motivo ela também não fez os caminhos do mar como fez o Espírito Santo? Por que o emigrante açoriano não a levou no seu coração? Será que a explicação está no fato de a maioria dos emigrantes serem oriundos das ilhas Terceira, Graciosa, Faial, Pico e São Jorge? Não sei a resposta. Sei apenas que aqui ela não se realiza e, muito menos, no restante do País, não fazendo parte das devoções populares brasileiras. Diferente do Senhor Bom Jesus dos Passos e do Senhor Bom Jesus largamente celebrado em todo o Brasil e sob diferentes denominações, tais como: Senhor Bom Jesus do Bonfim, de Pirapora, do Monte, do Livramento, de Vieiras, de Nazaré, do Horto, da Cana Verde, da Lapa, de Iguape, de Araquarí, de Tremembé, do Matosinho, das Dores, dos Aflitos e tantos outros.
Pagador de Promessa, Foto: António Ferin,2009
No entanto, em Ponta Delgada, na Ilha de São Miguel ela acontece há mais de trezentos anos e é incomparável por sua grandiosidade e esplendor.
Senhor Santo Cristo dos Milagres é arrebatador. Uma coisa é visitar o Santuário nos outros dias do ano. Outra coisa é assistir de perto as celebrações e festejos e sentir a força da fé daquela gente a depositar todas as suas aflições ao pé da imagem de um Cristo, o Ecce Homo, dolorido e ao mesmo tempo com um olhar doce, paternal, que só fala de esperança. Aí se entende o que move aquela massa humana em torno de uma grande fé ou crença popular tão forte e de intensos significados que a faz una em todo arquipélago e para onde convergem as preces e os olhares pungidos de tantos fiéis.
Já participei da Festa do Senhor Santo Cristo dos Milagres e guardo na memória a emoção sentida e a promessa que fiz olhando a veneranda imagem. Quero voltar e refazer mais uma vez, passo a passo, o longo percurso da procissão, deixar o meu olhar encontrar o Dele por um momento e agradecer à misericórdia Divina por uma graça alcançada e que me devolveu a paz de espírito.
Era maio de 2005. O vento forte, a chuva e o frio fora do tempo e até um breve blecaute que atingiu Ponta Delgada na noite de sexta-feira e da abertura da festa não impediu o ir e vir dos devotos para uma oração, um olhar, uma lágrima perdida, uma promessa devida. Da madrugada de sábado até domingo procurei acompanhar e compreender os significados do culto e do próprio ritual marcados por momentos de intensa religiosidade e beleza no Santuário do Senhor Santo Cristo, onde um mar de flores abraçavam a imagem e no lado de fora, no campo de São Francisco, uma feérica iluminação dominava com arte todo o espaço.
Foto:Victor Melo,2009
Não dá para esquecer a comoção sentida no trasladar da imagem acompanhada dos promesseiros e da multidão pelas ruas, cobertas de tapetes, na procissão do domingo. Ou melhor, é impossível. São daqueles momentos únicos que se vive intensamente e que te acompanham como um bem maior tatuado no teu coração pelo resto dos teus dias.
Ponta Delgada, toda engalanada, assistiu e acompanhou rua por rua, num mesmo ritmo, a procissão da imagem de Jesus Cristo coroado de espinhos, sofrido, cheio de amor e levando com Ele todas as nossas aflições e esperanças. Meu olhar ia do povo às janelas e varandas ornadas de flores e lindas colchas, onde famílias confraternizavam e reverenciavam a tradição secular, um testemunho de amor e devoção que se repete há 308 anos com o mesmo louvor e devoção. Magistral história de uma emoção coletiva através do tempo. Algo verdadeiramente grandioso que nunca vi igual e sei que nunca vou esquecer.
Nota: este texto foi adaptado e publicado no Livro Peregrinos do Senhor Santo Cristo,de Daniel de Sá, Ed.Paulus, Lisboa,2009.
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