SÉRGIO DA COSTA RAMOS, O MANEZINHO DA CRÔNICA
Sérgio da Costa Ramos retoma numa das crônicas o inventário feito no século XIX pelo o russo de ascendência alemã Georg Heinrich von Langsdorff , que disse sobre a Ilha do Desterro, hoje Florianópolis, cujo nome antigo aludia ao fato de servir de lugar de castigo para criminosos portugueses: “Poucos lugares do globo possuirão praias tão bonitas e de um desenho mais interessante e caprichoso, como a Ilha de Santa Catarina”. O que o russo e o catarinauta têm em comum? O mesmo que Pero Vaz de Caminha tem com os dois: sabem transformar em palavras o que vêem, intuem, sentem.
A crônica é um mar de complexas navegações. Bons escritores já naufragaram nesse mar por considerarem ser a crônica um gênero menor, algo que destilariam entre um romance e um ensaio, entre um conto e um poema. Não é bem assim.
Walter Galvani, cronista gaúcho dos bons, que arrebatou o prestigioso galardão Casa de las Américas com Nau Capitânea, disse que o cronista faz o vôo da gaivota, “rente às ondas até a hora de fisgar o peixe e então voar, mais e mais, sem deixá-lo cair”, escritor-pescador que leva o peixe-texto ao leitor-gourmet, sabendo, entretanto, que o prato deve alimentar todos os leitores e não apenas aqueles que são capazes de degustar alguma refinada ironia.
Sérgio da Costa Ramos nos lembra todavia que nem sempre as coisas foram como as coisas são. Em algo piorou a bela Ilha, mas os usos e costumes melhoraram, e muito, em alguns itens. É tão atento a como as coisas são como o é a como as coisas foram, quando se trata de invocar o passado para iluminar o presente. Ele nos recorda que “até 1920, banhar-se nas águas de qualquer das duas baías, na praia do Vai-quem-quer ou na praia do Müller, era “postura” punida pelo código municipal. Dava multa e até cadeia, “por atentado ao pudor”. Os 62 mil cidadãos da Ilha levavam uma vida tranquila, quase sonolenta, sem o dinamismo da capital da República, cujos bondes já eram elétricos desde 1912. Os navios traziam os jornais dos grandes centros apenas uma vez por semana. Uma vez ou outra eram os aviões Junker da Varig que faziam essa gentileza, aterrissando os jornais na pista do Campeche”.
Na companhia de Luís Fernando Veríssimo, na capa de outro livro do autor, escrevi e reitero: estamos diante de um dos grandes cronistas brasileiros. “Ter nascido nesta Ilha”, diz Sérgio da Costa Ramos em outra passagem, “é ser vizinho de porta do Criador”, onde o manezinho (palavra ausente dos dicionários, como outras 300 mil que aí pululam à espera de lexicógrafos atentos pelo menos aos cronistas, pel´amor de Deus!) profere expressões como estas: “mofas com a pomba na balaia”, “arrombassi, Laíla”, “se é segredo não me contes, se é intriga não me digas”, que às vezes parece falar hebraico, etrusco ou alguma língua extinta que aqui reviveu: “djá hoch”, “garrou a dizê”, “criô nojo”, “arrengou-se”. Ia esquecendo que o primeiro tem um diminutivo: djá hochinho. Na vulgata da língua portuguesa falada no resto da costa brasileira é “ainda há pouco, agorinha”.
Das sextas-feiras dirá: “Basta raiar a aurora de uma sexta-feira e a sua especial atmosfera começa a inocular no ser humano uma urticária de viver”. E do passado nos trará o detalhe absolutamente precioso de que Dom Joaquim Domingues de Oliveira, calçando sapatos Samello, pisava nas procissões de Corpus Christi sobre gloriosos tapetes de “arroz, feijão, milho, lentilhas, pó de café, pó de serragem, flores, conchinhas, barbas de velho, areias tingidas”, precedendo o papa Bento XVI, que calça Prada.
Acrescento, para finalizar mais um rápido relâmpago sobre o manezinho da crônica (será que vai pegar?) que foi uma pena eu não saber disso quando fiz para a revista Playboy o perfil de Wílson Sábio de Mello, que, na companhia do pai, trouxe nas costas o primeiro couro de boi para fundar a empresa que um dia forneceria sapatos ao glorioso arcebispo de Florianópolis por tantas décadas! Mas, pagando o tributo ao cronista que tanto nos entretém, instrui e diverte, lembro que o último sobrenome do turiferado oligarca da Santa Madre Igreja era Belleza, que ele retirou “porque não ficava bem o sobrenome Belleza para um religioso”.
Melhor que um texto solitário de Sérgio da Costa Ramos só mesmo uma coleção de suas crônicas e sua divertida companhia à beira de copos e pratos naqueles lugares que somente ele parece saber onde ficam, em alguns desvãos de sua tão amada e bem conhecida Ilha, da qual ele é um dos capitães literários, ao lado de nomes que honram as letras catarinautas, adjetivo inventado por outro nome solar das letras locais, o ínclito Dante Mendonça, cronista catarinense exilado no Paraná, como Salim Miguel já o foi no Rio de Janeiro, e outros foram em outros estados, incluindo a desatenção que em Santa Catarina têm grandes intelectuais brasileiros, raramente valorizados na terra que habitam ou na qual nasceram.
Mas, querem saber de uma coisa? Vamos ler Sérgio da Costa Ramos! Este é dos bons e seu talento já foi reconhecido alhures. Sabem onde fica alhures? É depois de onde Péricles Prade ou o Diabo, não sei bem qual dos dois, perdeu as botas quando procurava a inspiração que fez dele, de Guido Wilmar Sassi, de Sylvio Back, de Alcides Buss, de Edla van Steen, as personalidades referenciais que são das letras catarinenses, entre muitos outros! (xx)
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Do Autor Deonísio da Silva:”O domínio das técnicas narrativas, o trabalho equilibrado com a tradição e a invenção e a linguagem sólida são algumas de suas qualidades literárias”, disse o Nobel José Saramago ao premiar, em 1992, o romance Avante, Soldados: para trás, uma visão cáustica das realidades sociais da guerra do Paraguai, como vencedor do Prêmio Internacional Casa de las Américas.
Deonísio da Silva é catarinense ou “catarinauta,” como gosta de dizer. Vive no Rio de Janeiro e é de lá que se faz ouvir do seu jeito ímpar de contar histórias, num tom crítico,perspicaz e bem-humorado. Com mais de 30 livros publicados,está traduzido em espanhol e italiano. Não para de publicar e escrever. A gente o encontra desde o Jornal do Brasil, Observatório de Imprensa até a Revista Caras onde ensina “De Onde Vem as Palavras”
Doutorado em Letras pela USP. É professor e Pró-Reitor de Cultura da Universidade Estácio de Sá,no Rio de Janeiro. Sim, Deonísio da Silva é um homem de Letras por inteiro aos 33 anos de carreira.