O velhinho das trovas
Teimo em sonhar com o velhinho das trovas. O tempo dando um salto para trás. Década de 40, a voz do pai: “No fundo, torce para a Alemanha. Ele é integralista.”
– Você se lembra desta? – falava no sonho uma voz vaga e familiar. Recitava:
Quando correndo na rua O vento é mui divertido;
Aos homens leva o chapéu
Às damas ergue o vestido.
Era do repertório do velhinho. Baixote, calmo, os olhos de um azul aguado, os cabelos brancos cortados rente ao crânio. Colecionava trovas de almanaques, de revistas, de seções domingueiras de jornais. Copiava-as a mão num livro grosso, as folhas tracejadas em linhas vermelhas tal como um livro diário de contabilidade. Morando na vizinhança, aparecia lá em casa à noite para ouvir o noticiário da Guerra no aparelho de rádio Philco de meu pai. Vinha calçando sandálias. A barriguinha proeminente avultava da calça de brim.
– E desta outra, lembra? – ainda, no sonho, a figura vaga e familiar:
Chove, chove, chove muito
Chove chuva miudinha;
Se chover na tua cama
Podes vir deitar na minha.
O velhote recitava as trovas de seu repertório interminável, sentado na poltrona de nossa sala. Muitas vezes ria dos versos que ia dizendo, uma risadinha contida, discreto palpitar dos músculos da barriga, os olhos semicerrados, os lábios entreabertos deixando escapar um “chst, chst, chsdt”, sempre depois que declamava:
Uma velha muito velha
De tão velha se envergou;
Fui falar em casamento
E a velha se endireitou.
Que se sabia mais sobre ele? Além das suas crenças em Deus, na Pátria e na Família, informações nebulosas que se diluem no tempo. Era viúvo e morava com a filha feiosa, em casa modesta da nossa vizinhança. Tinha um filho internado na Colônia Santana por alcoolismo, ao qual ia visitar uma vez por semana. Dessas visitas costumava repetir a anedota que um médico lhe contara: um louco girava dias inteiros no pátio do hospício, sempre no mesmo sentido da direita para a esquerda. Certa vez, alguém intrigado com o fato resolveu indagar por que ele não girava nunca no sentido contrário, isto é, da esquerda para a direita. O louco respondeu: “Se eu fizer isso, vai desatarraxar o umbigo e cair a bunda”. O velhinho das trovas ria, “chst, chst, chst”, e repisava: “Ora, vejam só; ora, vejam só! Desatarraxar o umbigo e cair a bunda! Chst, chst, chst!”
Mas quando foi que o vimos na praça do comício? É difícil estabelecer datas num sonho. Lá no amplo espaço aberto, denominado Largo Fagundes, aquela estranha multidão de homens vestindo camisas verdes. Multidão inquieta e enérgica, a pontuar “vivas!” e aplausos levantando os braços e gritando “Anauê!” Discursos ecoavam por toda a praça através de alto-falantes. Propagavam conceitos de autoridade e de moralidade políticas; denunciavam a “fraqueza” dos então ocupantes do poder nacional; instigavam à formação de milícias para a vigília e a defesa de um ideal cristão, refratário tanto ao liberalismo corrupto que eles afirmavam ser praticado, como também ao socialismo degenerado pelas hostes bestiais do comunismo soviético. E quem estava lá, no meio daquela gente? Perfilado em seu uniforme verde, o semblante transfigurado de entusiasmo e determinação, lá também se encontrava o velhinho das trovas.
Agito-me no sonho. Não é esse o velhinho que conheço. Tento imaginá-lo de novo, ausente dessas manifestações sempre mentirosas e inúteis e repletas de sujeitos ansiosos de poder. Imagino-o sentadinho na poltrona de minha casa, usando sandálias, a barriguinha proeminente. Mas é a voz da figura vaga e familiar, que nunca se identifica, quem diz:
O sonho que a gente tece
É como a onda do mar;
Imenso quando aparece
Desfaz-se em nada ao chegar.
Sem dúvida, era do repertório do velhinho.
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In: Janela de Varrer.2006:72,Bernúncia Editora,Florianópolis
foto SSouza: Clic RBS