Uma insólita amizade
À tarde, por volta das cinco horas, encontravam-se no centro da cidade. O mais alto e gordo aparecia quando o magro e baixo, rosto miúdo de olhinhos vigilantes e melancólicos – rosto de coruja – já estava sentado no banco costumeiro do jardim da Praça XV de Novembro. O gordo sempre surgia de recantos diferentes, como elo perdido da corrente humana que, àquela hora, circula pelos caminhos da Praça. Sentava-se ao lado do magro no mesmo banco, apoiando as mãos espalmadas sobre os joelhos, as pernas afastadas, o tronco ereto, uma figura de porte altaneiro a exibir a barriga proeminente sob o paletó que nunca abotoava e a camisa de colarinho aberto, sem gravata.
Encontraram-se pela primeira vez há cinco ou seis semanas, quando o gordo por acaso e cansado de tanto andar, sentou-se no banco ao lado do magro. Sem olhar para ele, mas voltando a cabeça para um lado e outro como se procurasse alguém entre as dezenas de pessoas que passavam ali, disse: “Acredita que fiquei quase uma hora na fila para receber a droga da aposentadoria?” Então o magro, inclinando a cabecinha de coruja, respondeu: “Pois acredita que a minha ainda não foi depositada?”
A partir daí os encontros foram freqüentes, quase diários. Se os diálogos que travavam podiam dar, a quem os escutasse, a impressão de confusos ou destituídos de sentido, não havia dúvida de que contribuíram para solidificar uma terna e original amizade.
De início falaram apenas de generalidades, como estranhos cordiais. O gordo, por exemplo, dizia, sem olhar para o magro: “Faz anos que não vejo uma jabuticaba. Gostaria de saber por que ninguém mais planta jabuticabeiras”. O outro retrucava: “Deve fazer mais de vinte anos desde a última vez que vi um ingá”. Recordava o gordo: “Quando eu era garoto havia uma árvore enorme que dava uma frutinha roxa que a gente chamava de baguaçu. Me diga uma coisa, que fim levaram os pés de baguaçu?” “E os cinamomos ? E os butiás?”, indagava o magro. Falavam também de passarinhos, de ervas curativas, de festejos antigos, de devoções. Dizia o gordo: “Quando eu era garoto, Deus era como um xarope caseiro que a gente tomava todas as noites antes de deitar. A gente tomava uma colherada de Deus e ficava livre de todos os males até o dia seguinte”. O magro filosofava: “Não se fazem mais xaropes caseiros”.
Iam transcorrendo os dias e aquele conhecimento feito de retalhos de conversas aprofundava-se sempre mais. Umas poucas palavras, duas ou três frases, começavam a revelar detalhes da vida pessoal, familiar, de cada um deles. Pequenos acontecimentos vividos no dia-a-dia e comentados durante os encontros, identificavam sentimentos comuns que se manifestavam numa rápida troca de olhares compreensivos ou num breve esboço de sorriso. “Se eu pudesse nascer de novo, não me casava”, confessou o gordo. O magro refletiu, escolheu cuidadosamente os vocábulos: “A vida de casado não é má, porém cerceia a liberdade do homem”. E ficou a saborear silencioso a palavra “cerceia”.
Certa vez o gordo observou que os olhos melancólicos e vigilantes do amigo aparentavam estar mais melancólicos e menos vigilantes. Esclareceu o magro: “Não ando passando bem. Ontem à noite senti falta de ar, uma certa tontura, de certo motivados pela onda de calor que anda fazendo neste últimos dias. Mas minha filha marcou consulta para amanhã com o doutor Menezes”. O gordo insinuou um sorriso: “São os percalços da idade…” E, por sua vez, ficou a saborear a palavra “percalços”.
Na tarde seguinte, surgido da pequena multidão que vinha da Felipe Schmidt, o gordo chegou ao Jardim e não viu o magro sentado em seu banco. “Foi ao médico, com certeza”, disse consigo e continuou a perambular pelas ruas, um tanto desnorteado, juntando-se a outras pessoas naquele dia quente e movimentado de meados de janeiro. O amigo entretanto não apareceu no segundo, no terceiro, nem no décimo dia. Duas semanas foram o suficiente para que o gordo enfim compreendesse que o magro não viria mais. Uma certeza nascida definitiva, a pesar absoluta sobre o espírito. A partir desse instante caminhou sem destino, feito um autômato, durante o resto da tarde, o cérebro vazio diante dos pensamentos em tumulto. Depois, entrou num bar e pediu uma bebida. Antes de levar o copo aos lábios, derramou no chão parte do conteúdo. “Para a alma daquele cara-de-coruja dos infernos”, murmurou, como se rezasse…
In: Janela de Varrer.2006:130.Bernúncia Editora,Florianópolis
Foto SS: ClicRBS