Um nome: Marina
Eu me chamo Marina e este nome sempre soou em meus ouvidos como ferro em brasa queimando a carne de uma potra selvagem. Na infância, meu pai sentava-me em seus joelhos, me afagava em carícias e dizia com a voz tão rude: “Minha filhinha Marina”. Na adolescência, eu corria descalça pelas ruas soltando as pernas morenas e os rapazes voltavam os seus olhos brilhantes para a minha figura de corça tresmalhada e gritavam: “Oi, Marina!”
Os meus sonhos de amor eram povoados de florestas mágicas, onde seres fantásticos me envolviam em danças rituais coloridas por fogos de artifício. Mãos enérgicas, mas suaves, tomavam-me pelos braços e eu sentia a palpitação estonteante de uma vertigem, que aniquilava os meus sentidos. “Marina”, disse-me o primeiro namorado, com voz trêmula de inibição ou timidez, e eu fiz com que ele aprendesse todas as letras da paixão.
Aos dezenove anos, um rapaz magro e forte levou-me à garupa de uma moto para o ninho acanhado e pobre de um conjunto habitacional.. Foram dez dias longos de delírio, de penumbra e de palavras quentes. Depois esfreguei o chão, cozinhei, prendi cortinas nas janelas, lavei roupas num tanque. Ao crepúsculo de certa tarde de setembro, vi flocos de nuvens azuladas juntarem-se inconseqüentes ao redor de uma claridade poderosa e avermelhada no horizonte sobre o mar. Era um sinal e eu precisei dizer:
“Eu me chamo Marina”. Então desprendi os cabelos e, em chinelos como estava, saí pela porta da frente para nunca mais voltar.
Gosto de campinas abertas, amo a folha que flutua no ar, desgarrada da árvore. Ah, essa insensatez de todas as pessoas condicionadas por palavras e símbolos que não são amor nem liberdade!
Aos vinte e três anos, tive um sonho: eu era eu mesma, porém mais esguia, o rosto mais magro e maduro. Podia ver a beleza em minha pele, mas a vida de meus olhos se mesclava a um verde mais profundo, como um acorde nostálgico ou melancólico em meio a uma canção agreste. Ou como as palavras de um poema que, um dia, uma voz amiga me declamara:
Eu não dei por esta mudança
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida
a minha face?
“Não!”, eu gritava, “Isto não poderá acontecer!” E com um gesto brusco destruí o sonho, que se partiu em círculos a minha volta.
E quando os dias se passaram um homem que eu não amava se apaixonou por mim. Era sólido, era rico, era louco e possessivo. Tinha voz de comando e olhar desvairado. Fiscalizava os meus passos, levantava cercas nos caminhos, sabia o que era o certo e o errado, rezava a um Deus cego pelas manhãs, dava socos sobre a mesa, impunha disciplina, emprestava dinheiro a juros, fazia ginástica sueca, administrava os bens, sua fé removia montanhas, via televisão mastigando pipocas, falava da ordem e do progresso, sempre se saía ileso, não bebia e não fumava, nem comprava nabos em sacos, investia na indústria, tinha medo de tempestade, rolava as dívidas, seguia princípios e normas, lia os jornais em pijamas, era astuto qual raposa, não levava desaforos para casa, aspirava à gerência da Empresa.
“Eu te quero, Marinha; e nada vai impedir a realização do meu desejo”, disse-me ele com a sua enfadonha voz autoritária.
Na noite em que armou o laço incontornável do nosso casamento, fugi da festa e dancei nua e bêbada sobre a mesa de uma boate. À saída, ele me esperava, em suas mãos rebrilhando a lâmina de um punhal.
“Eu me chamo Marina!”, gritei para ele, com a voz rouca, antes que a noite se desmanchasse completamente no sangue da madrugada.
In: Janela de Varrer,2006:81,Bernúncia Editora,Florianóolis
imagem:ClicRBS/ Francine Canto