Vem de África, já se sabe, a pintura de Ferreira Pinto. E traz a festividade do pôr-do-sol, o aveludado negrume da chuva abundante e súbita, a violenta ardentia das queimadas, o calor nocturno, o som dos batuques, o cheiro da muamba e da terra molhada. Porque estas sensações, estes sons, estes cheiros, tem cores. De tal modo que, nem sequer quando o pintor humildemente se aproxima de um certo exotismo artesanal, deixa de nos surpreender por uma espécie de virtuosismo cromático. A Paleta de Ferreira Pinto possui, na verdade, uma escala rica de tonalidades. Extensa, de um extremo ao outro da luz.
Fosse, por hipótese, possível prescindir do incontornável curriculum e logo se tornaria extremamente esclarecedora uma “biografia essencial” do artista. Parte para África com quatro anos. Regressa aos dezasseis. No Porto, trabalha com Alvarez, de quem admite ter recebido então alguma influência. Mas cedo volta para Luanda, onde obtêm do pai ( sua especial referência afectiva) “tudo quanto precisava para pintar”. E é o que vai fazer até ao tempo da tropa. Até terminado o curso de engenharia de telecomunicações.
Desta forma de “autodidatismo” resultará que a pintura de Ferreira Pinto não faça lembrar a de qualquer outro artista. E que nem ele mesmo se sinta próximo de qualquer outro pintor. De resto, “a oficina, só por si, não empresta valor. A outra vertente não é tão vulgar. A técnica aprende-se. Mas é o acontecer que percorre o corpo e que movimenta a mão. A mão que é os olhos do espírito. É preciso pôr a cabeça na mão”.
Palavras suas que, de uma maneira ou de outra, acabam por conduzir ao retomar de um mistério. Do mistério da mediumnidade, entre os lugares, os seres, as coisas envolventes e a tela, finalmente transmutada em espaço privilegiado de acontecimento.
Assim, deixa esta pintura de ser apenas uma afirmação física, o puro prazer de trabalhar as cores, de tratar por tu a riqueza matérica. A estas, Ferreira Pinto segura-as, também, comovidamente, mudando-as, todavia, no registo da memória. Como um poeta com o verbo, com as palavras, com o ser.Mercê dessa medumnidade que só alcançam artistas e por virtude, da tal espécie de virtuosismo cromático de que já se referiu, julgo não existir no conjunto da obra de Ferreira Pinto qualquer clivagem entre a pintura de África e a dos Açores. Isto não obstante ( e a título de exemplo) o calor e a intensidade de quadros como “Quitandeiras” ou “Mercado Roque Santeiro”( Luanda, 1994) e uma escala mais rica e dominante de cinzas utilizada em trabalhos como “Homens de Ilha” (Ponta Delgada, 1996). Sem roturas, sem conflitos pelo menos demasiadamente aparentes, antes tranquilamente, esta paleta capta todas as manifestações das formas telúricas. Desde os céus de fogo sobre as planícies de África à nebulosa distante das ilhas e seus mistérios.
Ferreira Pinto acredita na inspiração, logo nos dons e nos frutos do Espírito. Pelo que, conforme diz, nenhum tema poderia ser mais “apelativo” para a sua obra do que a percepção das manifestações e modalidades do sagrado. Daí que a sua pintura haja facilmente assimilado os símbolos e os signos que são, ao fim e ao cabo, epifanias do mistério que preside à criação artística.
Referência: Texto “Sobre a pintura de Ferreira Pinto – de um extremo ao outro da Luz” por Emanuel Félix, em Ponta Delgada, a 31 de Maio de 1997.