Sobre BorderCrossings: leituras transatlânticas III, de Vamberto Freitas.
Começo por agradecer a Vamberto Freitas o convite para vir aos Açores apresentar este seu livro, convite que aceitei com o maior gosto, dado que há muito conheço a qualidade do trabalho do autor. Agradeço também o simpático acolhimento da Livraria Solmar, a quem felicito na pessoa dos seus proprietários, Maria Helena e José Carlos Frias, pelas bodas de prata do seu estabelecimento, que é uma referência nos Açores. Foi esta Livraria o primeiro espaço onde apresentei, em 2000, uma leitura de um conto inserto no volume Entre Pássaro e Anjo de João de Melo. Refiro-me ao conto «Postumografia de Pedro-o-Homem» que ainda no ano passado tive ocasião de levar para um Congresso na prestigiada Sorbonne Nouvelle, dada a actualidade do tema em questão. Veio esse convite no ano 2000 da parte da grande senhora a quem este livro é dedicado. Por isso ele me agradou logo na dedicatória: “Para a Adelaide, a memória de termos sido.” Sabendo-se que Adelaide sofre de um deficit de memória, Vamberto vai oferecer-lhe o que de mais precioso ela já não tem: a memória de ter sido a grande companheira em muitas situações e todas elas relevantes. A memória de uma grande cumplicidade que não se apagará, pois basta que um deles recorde para a fazer existir e persistir.
Ao terminar a leitura deste livro consolidei a ideia de estarmos perante um trabalho de altíssimo nível, assinado por alguém que revela uma cultura muito vasta no que ao cânone ocidental respeita, com particular incidência nos domínios anglo-saxónico e açórico. Vamberto Freitas é hoje um nome muito reconhecido e prestigiado no ensaísmo e na crítica literária não apenas nos Açores, mas também junto das comunidades luso-americanas e luso-brasileiras. No continente o seu nome começou a ser ventilado desde finais dos anos 70, enquanto correspondente e colaborador, na Califórnia, do suplemento literário do Diário de Notícias, sendo hoje reconhecido por prestigiados intelectuais portugueses de que constituem exemplo maior Eugénio Lisboa, Lídia Jorge, Teolinda Gersão, José Carlos de Vasconcelos, Ernesto Rodrigues, para além de muitos outros que embora residindo no continente têm raízes açorianas.A obra que Vamberto vem dando à estampa, desde 1990, compreende já 13 volumes, para além da sua actividade como tradutor de alguma ficção de Katherine Vaz, em 2002, e de poesia de Frank Gaspar, em 2006 e ainda de bom número de estudos críticos e ensaísticos sobre literatura norte-americana e açoriana em diversas publicações nacionais, americanas ou brasileiras incluindo revistas ou jornais cujas páginas literárias ele mesmo dirigiu, actividade muitíssimo meritória em termos culturais. É justamente o caso do Suplemento Açoriano de Cultura (SAC) do Correio dos Açores, que coordenou entre 1995 e 2000, bem como do Suplemento Atlântico de Artes e Letras (SAAL) da revista Saber Açores, entre 2003 e 2006, tendo eu mesma enquanto colaboradora, seguido de perto o seu excelente trabalho nestes órgãos. A página semanal de crítica literária BorderCrossings que actualmente mantém no diário Açoriano Oriental, de Ponta Delgada e a coluna Nas Duas Margens, no semanário Portuguese Times de New Bedford mais não são do que a continuação daquele intenso labor literário que se viu recompensado em 2015 através da justíssima atribuição da Insígnia Autonómica de Reconhecimento por parte da Assembleia Legislativa e do Governo Regional dos Açores. Quem quiser obter uma perspectiva minudente do pensamento crítico deste homem, leia a entrevista que encerra com grande proveito este volume, conduzida por Millicent Borges Accardi. Na verdade Vamberto Freitas é um caso raríssimo no panorama das nossas letras pela sua desenvoltura cultural e ecletismo que lhe permitem conciliar no seu trabalho ensaístico e crítico aspectos que raramente vemos conciliados no ensaísmo que se pratica em Portugal, a saber: a capacidade de fazer leituras minudentes que lhe vem da sua formação americana e da convivência com a escola do new criticism à qual acrescenta a herança de Edmund Wilson, que detestava os new critics e desta simbiose particularíssima resulta o procedimento crítico vambertiano que analisa com lupa, quando é necessário ver de perto, mas que não descura a visão ao largo ou seja os aspectos históricos, geográficos, sociológicos e psicológicos que contextualizam as obras e autores.A crítica literária de Vamberto, muito mais do que judicativa, revela uma função iluminante dos textos, sendo capaz de criar curiosidade e empatia no leitor, fazendo-o desejar ler as obras que nos apresenta. É justamente para isto que deve servir a crítica e a análise dos textos. Vamberto revela-se não apenas crítico, não apenas ensaísta, não apenas historiador cultural e literário, mas também escritor de ideias, fenómeno raro como Einstein fez notar a Paul Valéry. Não sei se conhecem a história que vem contada pela pena de José Rodrigues Miguéis n’O Espelho Poliédrico: Paul Valéry perguntou a Einstein se não trazia sempre consigo, no bolso, um caderninho para anotar as ideias que lhe acudissem. Einstein respondeu-lhe, prazenteiro: Ideias? Mas ter ideias é uma coisa rara! Miguéis conclui: “A fórmula da Relatividade cabe na cabeça de um fósforo e pode pegar fogo ao mundo.” Na realidade ter ideias é raro, raríssimo e frequentemente confundem-se ideias com opiniões, que muitas vezes são mero decalque de opiniões de terceiros. A escrita de Vamberto é clara, coerente e inteligente. Poucos serão hoje os que entre nós conhecem a obra desse grande crítico modernista norte-americano, Edmund Wilson, que exerceu a sua actividade desde os anos 20 até à década de 70, do qual Vamberto é seguramente o maior especialista em Portugal, estudando-o desde os anos 70. Este livro que hoje apresentamos traz-nos páginas notáveis extraídas de um extenso e inédito ensaio também da autoria de Vamberto sobre a obra de Edmund Wilson.É do maior interesse este texto sobre esse homem incómodo que entre 1946 e 1955 se recusou a pagar impostos como forma de protesto contra os gastos militares, movendo a maior campanha na América contra o fisco. Diz-nos Vamberto que “foi nesta altura, irónica e justamente, que o Presidente Kennedy o condecorou com a Medalha Presidencial da Liberdade. O IRS tentaria impedir a condecoração, mas Kennedy responderia que esta contemplava o contributo de Wilson à literatura e cultura do país e não “à boa cidadania”. Wilson era avesso a entrevistas, todavia é um dos críticos e ensaístas do século passado mais biografados no seu país, muito mais ainda do que a maioria dos ficcionistas e poetas da mesma época.
Vamberto toma Wilson como figura modelar não apenas na irrequietude e descrença na canonicidade do pensamento, mas também como investigador das mais díspares culturas nomeadamente a do Canadá e a do Haiti (e cito) “que ele via como não só oferecendo outras faces criativas e culturais da grande tradição do Ocidente, que ele tão completamente havia interiorizado, como agora contestava a hegemonia cultural e política sobre alguns desses povos oprimidos, ignorados e marginalizados.” Diz-nos ainda Vamberto que nesta busca dos saberes de esquecidos povos, Wilson vai desde a antiguidade dos Essênios até à contemporaneidade francófona do Canadá, passando ainda largamente pelas comunidades nativo-americanas dos dois extremos do continente, assim como pelos israelitas, e outros povos das Caraíbas. Muito antes do reconhecimento nas universidades americanas, já Wilson lia e apreciava toda a obra de Aimé Césaire, da ilha de Martinique; Wilson leu Césaire a caminho do Haiti, em 1949, quando se preparava para uma série de reportagens sobre a respectiva cultura, as quais viriam a constituir uma das secções do significativamente intitulado Red, Black, Blond and Olive.
Ao descrever a figura de Wilson, Vamberto mira-se no espelho da exemplaridade, resgatndo-o real e simbolicamente das margens esquecidas e ignoradas pelos críticos portugueses, com raras excepções, entre elas Eugénio Lisboa e David Mourão-Ferreira que foi a primeira pessoa que apresentou Wilson a Eugénio Lisboa.
Vamberto vai buscar a Gore Vidal as palavras certas sobre Wilson e sobre The Cold War and the Income Tax: A Protest: “Edmund Wilson é o nosso mais distinto homem de letras. Ele tem sido sempre (mesmo que os burocratas não o saibam) o grande defensor cultural da América. Perder um homem destes é um sinal que a nossa sociedade está a entrar numa zona de sombras que, uma vez atravessada, significa que é o fim de tudo o que os nossos fundadores esperavam vir a ser um país onde a felicidade seria utilmente procurada.”
Será talvez conveniente conhecer a campanha que Vamberto moveu no facebook contra o governo de Passos Coelho e Paulo Portas para melhor perceber os vasos comunicantes entre a campanha de Wilson e a sua própria campanha. Até mesmo aqui acompanho Vamberto: toda a escrita crítica ou ensaísta está eivada da nossa visão do mundo. Cedo aprendeu que “a grande literatura é sempre um retrato não apenas de um indivíduo e suas circunstâncias – como Ortega y Gasset escreveu -, mas também de toda uma sociedade ou comunidade.”
A relação entre literatura e sociedade é a linha de força deste livro, conforme o seu autor não deixa de apontar logo na introdução ao dizer-nos que este terceiro BorderCrossings “segue as mesmas linhas temáticas de sempre – literatura e sociedade, ou como a arte reflecte o quotidiano das nossas vidas, e sobretudo como os escritores deste mesmo tempo reagem a um período de transição histórica que atinge tanto o indivíduo como a comunidade em que está inserido, ou as vidas transfiguradas e espelhadas na prosa, poesia e no ensaísmo com que nos identificamos, ou que nos desafia a compreender outros modos de ser e estar.” Para Vamberto a literatura foi sempre um acto profundamente identitário, através da qual “vemos” o outro, o que nos obriga à auto-reflexão de quem somos e como somos.”Mas esclarece que é de literatura que aqui se trata:” Literatura não é sociologia, sabemos, por detrás dos “factos” estudados estão as narrativas que penetram fundo nos seres reinventados, nos personagens que da realidade passam a um palco de dramatização do riso e do choro, que é condição humana. “A atenção aos avanços e recuos civilizacionais plasmados nalguma literatura europeia levam Vamberto a escrever sobre a questão islâmica comentando o controverso romance Submissão de Michel Houellebecq e não fugindo às reflexões políticas, culturais e étnicas que ensombram a actualidade considerando o autor “ um dos poucos escritores europeus contemporâneos que tem a coragem de lançar na literatura as mais pertinentes questões que estão, mesmo que não sejam evidentes a muitos de nós, a determinar o rumo de uma Europa que deixou de saber qual é o seu papel no mundo, e, muito mais grave ainda, como manter a sua paz interna ou relançar a justiça económica para todos os seus cidadãos.” A reflexão sobre a Europa leva ainda Vamberto a tecer considerações muito pertinentes sobre o volume A Identidade Cultural Europeia, assinado por Vasco Graça Moura, e publicado em 2014, pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Encontramos aqui estudos muito pertinentes de outros escritores e poetas que não têm relação directa com os Açores. É o caso de Eugénio Lisboa e do volume IV de Acta Est Fabula, que compreende as memórias do autor entre 1976-1995 em Joanesburgo, Paris, Estocolmo e Londres. O grande romance da revolução de Abril, Os Memoráveis, de Lídia Jorge merece a Vamberto reflexões muito positivas, num contexto em que este romance se viu descriminado pela crítica portuguesa, mas não pela francesa, e posso garantir que ouvi da boca da autora esse lamento na cerimónia em que se fez excepção atribuindo-lhe o prémio da Fenprof, de cujo júri participei. Uma vez mais Vamberto viu bem o que outros não enxergaram. Assim com o romance Passagens, de Teolinda Gersão, ou O Sonho Português, de Paulo Castilho, ou A Máquina do Mundo, de Paulo José Miranda, ou O Retorno, de Dulce Cardoso, O Tempo é Renda de Isabel Mendes Ferreira, Até para o ano em Jerusalém, de Maria da Conceição Caleiro, ou Passos Perdidos, de Ernesto Rodrigues, ou A Mulher que Venceu Don Juan, da autora destas linhas. De salientar neste livro as finas análises da Obra Poética, de Manuel Alegre – Praça da Canção na sua 4ª edição ou o recente Bairro Ocidental. Lembro que Manuel Alegre acaba de ganhar o prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores e uma vez mais tenho a honra de ter pertencido a este júri.
Entre os brasileiros que mereceram atenção crítica de Vamberto encontram-se Rubem Fonseca, com a sua Amálgama de prosa e poesia; Chico Buarque, com o romance O Irmão Alemão, que tem por base eventos da vida do autor, nomeadamente esse irmão desconhecido; Daniel Galera, com o romance Barba Ensopada de Sangue, e ainda aqui estamos perante a questão da identidade temática tão do agrado do nosso crítico; uma visita ao Rio Grande do Sul através do romance de Paulo Scott Habitante irreal e o Fim de Fernanda Torres, por sinal o seu início como romancista numa supreendente estreia literária. O leitor ávido de cultura americana e luso-americana encontra ainda neste livro diversas exegeses acerca de autores sobre os quais já correu muita tinta, mas que Vamberto revisita trazendo a sua visão certeira, entre eles Alfred Lewis, Chomsky, Harold Bloom, Charles Reis Felix, Michael Cunningham, Harper Lee, Sinclair Lewis, , Jonathan Franzen, ou a deliciosa visão de Hemingway, pelos olhos de quatro das suas mulheres e pela mão de Naomi Wood.
Last but not least, aqui se rende homenagem aos autores açorianos: Onésimo com Minima Azorica: O Meu Mundo É Deste Reino, piscando o olho ao romance de João de Melo, aqui também contemplado com uma recensão a propósito da sua oitava edição e como não podia deixar de ser, a comemoração dos 25 anos de Gente Feliz Com Lágrimas, o seu emblemático título, não esquecendo o último Lugar Caído No Crepúsculo. Ainda aqui concordo com Vamberto: a temática açórica é de longe a mais conseguida na obra deste autor. Grande romance de língua portuguesa é o de Álamo Oliveira, Marta de Jesus: A Verdadeira onde nos surge Jesus como guerrilheiro anti-Poder, o que Vamberto muito bem assinalou. Como sátira à vida académica, Rapariga Celta Sentada num Javali, de Artur Veríssimo é um romance que todos devem ler e ao qual Vamberto presta merecido tributo, tal como à prosa de humor incessante, do autor de Porta Azul para Macau, João Pedro Porto, um jovem recém admitido na Associação Portuguesa de Escritores.
Vários outros poetas ou prosadores merecem atenção crítica de Vamberto, entre eles Machado Pires, Mário Mesquita, José Medeiros Ferreira, Aníbal Pires, Carla Lima, Leonor Sampaio da Silva, Daniel Gonçalves, Fernanda Mendes, Joel Neto e sobretudo Emanuel Félix, de quem analisa a Obra Completa, Volumes I, II e III com coordenação e revisão de Vasco Pereira da Costa, trabalho que Vamberto ressalva com grande ênfase: “Juntar o trabalho completo e público de uma vida envolve muito mais do que o conhecimento aprofundado e capacidade de avaliação de uma obra tão consequente como esta – exige, em igual medida, uma noção de ética que nem sempre é lembrada em trabalhos como este.” Estas considerações aplicam-se igualmente a Vamberto Freitas e por isso lhe agradeço a inestimável missão literária e cívica a que se tem devotado, fazendo votos de que estes excelentes trabalhos venham a conhecer uma ampla divulgação como merecem pela espantosa abrangência de conteúdos, de análises e de sínteses, constituindo uma arte de saber ver, saber escrever, saber pensar.
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Vamberto Freitas, borderCrossings: leituras transatlânticas III, Ponta Delgada, Letras Lavadas Edições, 2016.
*Texto lido na apresentação do livro na Livraria Leya/SolMar, a 18 de Março de 2016
** Aqui publicado com a devida autorização da autora do texto Teresa Martins Marques e de Vamberto Freitas,autor da obra.