Sobre Cicatriz da Chuva, de Carlos Enes
“devorei as sílabas do teu olhar”, pág. 50
Com o romance Terra do Bravo (2005) já ele se revelara plantador de palavras e agora, com o livro Cicatriz da Chuva (Instituto Açoriano de Cultura, 2016), o historiador estreia-se (tardiamente) na publicação do discurso poético. O seu nome é Carlos Enes, terceirense da Vila Nova e do Mundo, cidadão com provas dadas no empenhamento cívico e na participação política.
Atente-se no título: Cicatriz da Chuva. Não se trata de uma poesia de chuva, nem de uma chuva de poesia (chuva não alaga poeta…). A chuva está lá para servir um outro propósito: o da representação de um tempo insular numa atitude de denúncia do “ferrete do despotismo” (pág. 39), de confrontação com o real e com um certo mal-estar português: “País pobre país / onde a cicatriz da chuva / atravessa o espelho da memória / e só vê cardos de fogo/ a fugir pelas falésias./ Aqui se nasce e morre/ com o micróbio sentado à mesa/ a roer a broa escondida no bolso/ a morder a esperança/ pendurada em duodécimos” (pág. 32).
Espaço imagético e afectivo, a ilha (a Terceira, com visões do Pico e São Jorge) está presente e pressentida neste livro. A ilha, território de magia, beleza, sedução e mistério, sensualiza já que, sendo terra-mãe, está ligada à aprendizagem da vida e é como se fosse a mulher primordial e genesíaca, portadora da vida, do desejo e da morte, funcionando como símbolo da fecundidade e da fertilidade. Associada à ilha temos o mar como símbolo de um regresso às águas amnióticas do materno ventre. Daí uma poética telúrica, uma visão panteísta da Natureza, uma união com a vida cósmica em moldes muito próximos do epicurismo, a que a bem conseguida capa de Angelina Caixeiro dá expressão plástica.
O que importa reter é que este é um livro de impressões e afectos, vibrações, olhares cruzados e memórias soltas. Pesquisador subtil de realidades visíveis e invisíveis, Carlos Enes envereda por uma poética da intimidade, da expressão lírica do discurso amoroso, da exaltação do corpo, do ímpeto sensual, da contemplação erótica: “Como é perfeito o púbis da tarde/ a desafiar o raio de sol embevecido”, pág. 11. Esta intimidade não é mais do que a relação que Carlos Enes (digo, o eu do poema, ou o sujeito poético, como querem os académicos) estabelece com a sua escrita: é a sua atitude (vigilante) em relação às palavras, a sua maneira de as acolher e de as convocar, de as surpreender e de se surpreender com elas. Perante o enigma do real, o poeta dirige a sua atenção (nua e pura) não só para dizer o que o seu olhar vê, mas também para ordenar e exprimir (recriar) o caos interior, a vertigem do inumerável e do inexprimível.
Por conseguinte, estamos na presença de uma poesia que, antes de mais, se assume no acto da própria escrita. O poema é nada e é tudo. Começa por ser a fascinação do incriado. Na sua génese está uma experiência de desolação e de vazio perante a nudez do papel ou do écran do computador. O que ele (poema) nunca será é obra do acaso ou de uma súbita inspiração divina. E isto porque qualquer produção poética é sempre fruto de um trabalho árduo, por vezes penoso (“Escrever versos dói”, como diz o emblemático verso de Santos Barros), numa conquista sílaba a sílaba, numa busca incessante da palavra exacta e essencial. Nessa palavra exacta e essencial buca o poeta ritmos e pulsações, silêncios e sonoridades. Está aqui a essência de Cicatriz da Chuva, que busca uma harmonia em tempo de muitos ruídos e de múltiplas dissonâncias.
Salpicados de sinestesias (este livro tem cheiros do cedro do mato e de amoras maduras), estamos na presença de (furtivos) versos com boa ressonância musical e de sedutora prosódia (“Ai lira formosa lira/ Mulher de fogo e paixão/ Teus olhos cor de safira/ São a minha perdição”, pág. 49), que deslizam em vogais abertas, jogando com as tónicas e átonas de sílabas apetecíveis. De resto, a poesia tem, na sua origem, uma vocação cantante. Foi assim com os gregos. Foi assim com a poesia trovadoresca. E hoje não há quem não cite Paul Eluard: “A poesia é a linguagem que canta”.
Precisamente por ser herdeiro assumido da tradição oral, Carlos Enes escreve versos bem carpinteirados (“Nos olhos do meu amor acendem-se pirilampos/ como se fora natal”, pág.48), de grande beleza plástica (“Os mirtilos ardem como loucos/ no pomar dos teus olhos”, pág. 9), apreciáveis recursos sensoriais (“Num ápice a pressão arterial trepa ribeiros e valados/ em noitadas cobertas de suor”, pág. 57), e ousadas imagens poéticas: “As hienas já não bebem bagaço em alambiques/ de prata falsificada”, pág. 31.
Temos poeta.
Victor Rui Dores
Victor Rui Dores, natural da Graciosa, vive na Horta e de lá se faz ouvir com propriedade e sentimento.
Gosto do escritor,poeta, animador cultural,professor, homem de teatro e de muitas Artes.
Dias atrás,pelos caminhos do mar, chegou o seu belo "A Graciosa Ilha" e passeei-me por suas canadas, encontrei amigos, matei saudade, caí de amores por seus moinhos elegantes e ainda não perdi a vontade de construir um igual lá em São Joaquim,na serra catarinense e dele fazer uma biblioteca. Ou até, comprar um moinho lá nos Açores, arrumá-lo e por ali passar os dias.
Tudo isso emergiu enquanto encantada folheava as páginas do seu A Graciosa Ilha.
Obrigada Victor Rui Dores por sua escrita graciosa como a sua ILHA.
Lélia Nunes
27/12/2016.