Email enviado em 3 de março de 2004
Querida Amiga,
Recebi seu e-mail sobre a morte do nosso muito caro Emanuel Félix na véspera de partir para a Alemanha, de onde só regressei no domingo à noite. Por isso não lhe falei ainda do belo texto com que evocou o tão inesperadamente desaparecido poeta que todos admirávamos e estimávamos.Eu conhecia-o desde os primeiros passos poéticos,isto é,desde o "Fonte da Saudade".A entrada "FÉLIX,Emanuel", da "Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura verbo"foi sugerida por mim e eu próprio a redigi.(…)
Que novidades de Florianópolis?
Saudades.
Eduíno
FÉLIX, EMANUEL
(EMANUEL FÉLIX BORGES DA SILVA (1936-2004)
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"A sua obra poética distingue-se pela riqueza do imaginário,em que se misturam sugestões do passado mítico e do real quotidiano, e por um discurso denso,contracto,lapidado com mão seguríssima e experta,e ao mesmo tempo límpido,fluente."
Eduíno de Jesus
Escritor,poeta
Lisboa,Portugal
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" Em Emanuel Félix[pressente-se] a tristeza e o seu gesto,o amor e a sua festa, a telepática angústia da ilha e a solidão do mar…Há a comunhão dos búzios e o sossego dos barcos;o volume do corpo ausente e a sugestão das flores;o nevoeiro do silêncio e a tranquilidade subtil dos náufragos;a eterna inquietude das viagens e o indelével cantar de amigo. Há um lirismo telúrico:um fogo,uma claridade marinha."
…Emanuel Félix é, na verdade, o poeta da perfeição. Cada poema contém uma ideia singular que se estruturaliza e levanta como obra independente e rara, deixando apenas a mão desenluvada que se une ao poema seguinte e que transforma as parcelas num todo indestrutível. Cada poema possui a sábia contenção das palavras, o mesmo rigor matemático das ciências concretas. Na sua poesia nada falta e nada se exclui.
Redigo: Poeta perfeito ! – Heresia perfeita para quem não crê que estas ilhas do Atlântico são a casa de um dos mais significativos criadores da Poesia Portuguesa contemporânea."
In: Prefácio de "A viagem possível"(1965-1992)
Álamo de Oliveira
Escritor,poeta
Terceira, Açores
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Carta ao Emanuel Félix*
Eduardo Bettencourt Pinto
Como um menino que faltara à escola, estavas sentado no café diante de uma taça de gelado. Angra tinha amanhecido, dengosa, sob o fino tecido de um rocio fresco, alvinitente. Eu entrara ali para acordar da noite mais pesada do Mundo, com um café – o milagre breve, oloroso, escuro e quente no fundo de uma chávena. As noites na Ilha são longas, sobretudo com o torpor dos fusos horários.
Hesitei junto à porta. Dou-me mal com o fumo do cigarro. Ali o ar, da nicotina, parecia de cinza. Passei, fugazes, os olhos pelas mesas. Foi então que descobri o Urbano, sentado ao teu lado. A tua cabeleira de poeta, de espuma e ressonâncias, iluminava-te a cabeça de versos. Olhaste-me com espanto, poisando a colher, deixando voar as palavras mais inocentes que só um grande poeta consegue dizer. No abraço, passaram todas as gaivotas da Ilha.
Não és como os ociosos de domingo que, absortos e distantes, observam sem ver a rosa do jardim ou a cor de um momento junto do olhar, a sua forma e odor. Quem crepita além de uma memória que morre segundos após ter nascido? Quantos reconhecem esse ofício nobre, frágil e belo, que habita a terra, os horizontes e o universo do poeta? Ele vive do insondável, da invisível ressonância. E foi assim que te encontrei, num estado de levitação, sonhando com palavras. Sentado a uma mesa da manhã, despias, com uma colher de ice cream, um clamor indecifrável, enquanto arrumavas no silêncio a mais ardente letargia do mar.
Tens navegado por oceanos de pedra e ar, ouvindo o rumor de cortinas fustigadas pelas brisas do Oriente, observando os pintores, os músicos que desceram até Jericó brandindo ramos de oliveira, a tez queimada dos pastores de ovelhas, os intranquilos pescadores da tua infância. Foste assim crescendo entre as tuas palavras, até que todos os países e todos os lugares passaram a ser uma geografia de afectos entre os teus dedos, enquanto o fervor das cidades te embranquecia os cabelos e uma cerejeira florescia perto de ti, sempre que escrevias(es).
Sento-me contigo na cadeira antiga da Ilha, enquanto o ice cream vai desaparecendo da taça e as névoas de Julho se vão afastando aos poucos da janela do café onde o teu olhar, atento, poisa em busca do eterno.
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*Texto de homenagem ao poeta Emanuel Félix pelos 50 Anos de Vida Literária,2002.
Eduardo Bettencourt Pinto
Escritor, poeta
Vancouver, Canadá
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EMANUEL FÉLIX por Vamberto Freitas, em três tempos:
Emanuel Félix ou uma outra leitura açoriana de um poeta universal,(1993)
"Poeta da contenção e das nossas contingências sem fim, Emanuel Félix permanece sempre fiel a si próprio e ao mundo circundante,esse que lhe desperta infalivelmente tempestades de alma,esse que a sua inteligência e sensibilidade de artista apreende fulminantemente. Para ele,uma vez mais, escalpelizar a palavra e transmitir o pensamento nunca acontecem sem a devida contextualização – é desse modo que ele atinge o ideal que será sem dúvida o seu relacionamento profundo com a sua comunidade,com a sua cultura nacional e definitivamente com mundos diversos no além-mar." ……………………………………………………………………………………………………………………………
"Emanuel Félix é um poeta português por inteiro dos Açores. Tentar escamotear esse facto,na adjectivação da crítica nacional ou das ilhas,é demonstrar quão complexidados e quão desorientados estão todos quantos ainda não perceberam que não há beleza sem geografia nem saber sem circunstâncias culturais,sociais e políticas inerentes e inescapáveis à realidade imediata do artista.(…)
Com Emanuel Félix, repita-se, sentimo-nos na companhia de um mestre da poesia autenticamente universal sem deixarmos de ir reconhecendo o que fica,digamos assim,no outro lado da nossa porta açoriana."
.( In: "Mar Cavado, Da Literatura Açoriana e de Outras Narrativas".1998:48 e 49)
solilóquios de um poeta (1994)
"Toda a sua obra é uma passadeira em busca da liberdade, confraternização, beleza. Para o Emanuel,creio,é esta a função de sua arte, em que denúncia de infelicidades, de contorcionismos públicos(logo,políticos) e o perpétuo questionamento de si próprio e do mundo à sua volta são, ao mesmo tempo,o inevitável contencioso humano e aquilo que demarca o Homem consciente do seu tempo e da sua fragmentação interior. Como quem diz repetidamente:Somos e estamos incompletos,mas não sós."
(In: "Mar Cavado, Da Literatura Açoriana e de Outras Narrativas".1998:51)
as quatro estações (1997)
"Emanuel Félix permanece, assim, um poeta de poetas."
"a poesia de Emanuel Félix é um directo e fraternal gesto de aproximação do outro, a comunhão cerimonial tanto com o que de melhor persiste em cada um de nós como um diálogo com a tradição literária universal,esse abraço melvilliano que rejeita todas as fronteiras do espaço e do coração. É uma característica da poesia de Emanuel Félix ser sempre dirigida a uma pessoa no seu mundo imediato ou mais ao longe através de dedicatórias, a prática do dialogismo com outros poetas das ilhas e do mundo exterior,o refazer pela tradução a poética de culturas que pensamos (pensávamos) longe de nós,inatingíveis e incompreensíveis."
"…Emanuel Félix,nesta sua poesia,sabe que a vida é aqui ,nada mais nos resta senão a sementeira da bondade,a ilusão da partida que não nos larga nunca, a conversa perpétua com os outros e contra a prisão interior de cada um em sua volta."
(In: "Mar Cavado, Da Literatura Açoriana e de Outras Narrativas".1998:57e58)
Vamberto Freitas
Professor, escritor
Universidade dos Açores
São Miguel, Açores,Portugal
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